Há 450 anos, o colonizador português Estácio de Sá desembarcava em uma praia entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar, onde hoje fica o bairro da Urca. O objetivo principal era expulsar franceses que tinham se estabelecido na Baía de Guanabara sem autorização da coroa portuguesa anos antes e travar uma guerra contra os índios tamoios. Ali, o Rio de Janeiro foi fundado pela primeira vez, em 1º de março de 1565.
Vencida a guerra, em 1567, dois anos depois da fundação da cidade, o governador-geral Mem de Sá, tio de Estácio, resolveu mudar de lugar a precária vila, passando da Urca para o Morro do Castelo, deixando ali apenas um forte e algumas casas. Por motivos estratégicos, o Rio era “fundado” pela segunda vez.
Desse período, no entanto, pouco restou além de relatos. Pouquíssimas estruturas físicas dos primeiros anos de colonização da cidade sobreviveram a esses quatro séculos e meio. Das construções do século 16, quase nada ficou de pé.
Segundo o geógrafo João Baptista Ferreira de Mello, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que promove passeios por roteiros históricos do Rio de Janeiro, a maioria das construções dos primórdios da cidade usava métodos e materiais precários. Por isso, tais edificações ou desapareceram ou foram sendo substituídas por construções mais sólidas.
“As igrejas, por exemplo, começaram a ser construídas no século 16, mas eram de taipa e de palha. A antiga catedral, de Nossa Senhora do Carmo (na Praça XV), foi fundada no século 16, mas ela foi sendo ampliada e nada ficou do original. Assim também aconteceu com o Mosteiro de São Bento”, conta.
Outro motivo para essa carência de edificações históricas primordiais foi a destruição do Morro do Castelo, o núcleo original da segunda fundação. Em 1922, o prefeito do Rio de Janeiro na época, Carlos Sampaio, arrasou o morro que tinha construções como o Colégio dos Jesuítas e a Igreja de São Sebastião, com o objetivo de modernizar a cidade para sediar a exposição universal que celebraria os 100 anos da independência.
“O Morro do Castelo tinha não só essas construções, como também muitos casebres. Ele reunia uma massa urbana pobre. Então, houve uma grande discussão sobre a demolição do morro com o intuito de modernizar e abrir mais a circulação de ar na cidade. No Rio, muito se debateu entre preservar os marcos mais antigos e modernizar a cidade. Isso provocou uma discussão enorme na imprensa. No fim, foi vitorioso o grupo que defendeu a derrubada”, afirma a historiadora Marieta de Moraes Ferreira, da Fundação Getulio Vargas, organizadora do livro Rio de Janeiro: uma cidade na história.
Entre os remanescentes desses primeiros anos está a Ladeira da Misericórdia, único remanescente do Morro do Castelo. A ladeira, com calçamento de pé-de-moleque, é considerada uma das primeiras ruas da cidade e teria sido construída logo no início do povoamento na segunda metade do século 16.
Outro possível remanescente do século 16 é o prédio do centro de visitantes do Jardim Botânico, na zona sul. O edifício já foi a sede de um dos primeiros engenhos de cana-de-açúcar da cidade, o Engenho D'El Rey, construído pelo governador Antônio Salema, na década de 1570.
Antes de tornar-se centro de visitantes, a antiga sede do engenho passou por muitas reformas e ampliações. Por isso, é difícil dizer se há alguma estrutura original de quatro séculos atrás. Mas funcionários do Jardim Botânico acreditam que pelo menos a fachada lateral, onde hoje fica a entrada do centro de visitantes, ainda é daquela época.
Do núcleo original da primeira fundação da cidade, na Urca, só restou a Fortaleza de São João, um complexo militar que começou a ser erguido em 1565, logo nos primeiros dias de colonização portuguesa. O problema é que, com o tempo, vários acréscimos, modificações e reconstruções foram feitas ali. Dos primeiros tempos, possivelmente nada restou.
Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a estrutura mais antiga da fortaleza ainda de pé é o portão. Segundo o responsável pelo setor cultural da Fortaleza de São João, coronel Thadeu Marques de Macedo, a estrutura, tombada pelo Iphan, é do início do século 17.
Ele explica que, com o tempo, o forte precisou ser aprimorado para manter sua função militar. Por isso, as construções originais foram sendo substituídas por estruturas mais resistentes. “A evolução da arte bélica fez com que as fortificações também evoluíssem”, disse o coronel.
Se o Rio perdeu quase todo seu patrimônio arquitetônico do século 16, pelo menos conseguiu preservar seu marco de fundação: um monumento, em mármore branco, com o escudo de Portugal talhado em uma face e a cruz de Cristo em outra. O marco, que já esteve na Urca e no Morro do Castelo, hoje se encontra exposto em uma lateral da Igreja dos Capuchinhos, na Tijuca, zona norte da cidade, com pouco destaque.
Na mesma igreja encontra-se o túmulo do fundador da cidade, Estácio de Sá, datado de 1583. Estácio morreu em 1567, com uma flechada no rosto. Seus restos mortais foram inicialmente sepultados na Urca e depois transferidos para a extinta Igreja de São Sebastião, que ficava no Morro do Castelo. Data dessa época a lápide feita a pedido de seu primo, o então governador Salvador de Sá. O túmulo foi finalmente transferido para a Igreja dos Capuchinhos em 1922.
Passado oculto
Se os vestígios do século 16 praticamente desapareceram para o carioca e o turista que visita a cidade, muita coisa pode estar oculta sob a terra ou sob novas construções. As ruínas de uma construção de taipa, por exemplo, foram encontradas há cerca de dez anos, durante escavações na Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé.
Acredita-se que as ruínas pertençam à ermida (pequena igreja) de Nossa Senhora do Ó, erguida antes de 1590 naquela região. A pequena ermida acabou desabando no início do século 17 e sobre ela foi construído o novo templo, pela Ordem dos Carmelitas. No ano passado, as escavações para a construção de uma agência bancária na mesma rua (Primeiro de Março), no centro do Rio, descobriram os restos arqueológicos, também em taipa, de uma construção provavelmente da década de 1580.
Como no local será construído um banco, os restos arqueológicos estão sendo catalogados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e retirados do terreno. Os trabalhos de escavações arqueológicas ainda estão em andamento.
“A base da paliçada é em taipa de pilão – uma técnica de origem europeia que utiliza uma espécie de forma de madeira recheada de argamassa de cal para fixar toras de madeira”, conta o arqueólogo Claudio Prado de Mello, que acredita ser essa a construção mais antiga da cidade.