Morar na capital com a maior taxa de mortalidade do coronavírus no Brasil não tem evitado que cariocas lotem praias e bares durante a pandemia, mas as aglomerações provocadas pela flexibilização do isolamento e o fechamento de leitos montados para lidar com a Covid-19 podem abrir as portas para um colapso na saúde do Rio de Janeiro, alertaram especialistas.
A cidade cruzou na semana passada a trágica marca de 10 mil mortes pela Covid-19, com uma taxa de 151 óbitos a cada 100 mil habitantes que é muito superior ao índice nacional de 63 mortes por 100 mil pessoas, e que colocaria a capital fluminense no topo do ranking mundial de mortalidade pela doença caso fosse um país.
Até o momento, o Rio de Janeiro registra 10.116 mortos e 95.337 casos da doença provocada pelo novo coronavírus.
Uma suposta redução nos números oficiais de casos e de mortes no mês passado motivou uma ampliação da reabertura das atividades econômicas na capital fluminense, o que aumentou o número de pessoas nas ruas e provocou cenas rotineiras de aglomeração, ao mesmo tempo em que as autoridades estaduais fecharem leitos de UTI abertos excepcionalmente por conta da pandemia.
Especialistas apontaram, no entanto, que não houve queda, mas sim um atraso de notificação, o que se confirma quando observados os dados pelas datas de ocorrência e não de notificação, e significa que houve uma estabilidade, em vez de redução.
Como a maior parte da população ainda está suscetível ao vírus, especialistas ouvidos pela Reuters alertam que há uma clara possibilidade de novo aumento dos casos devido ao grande número de pessoas nas ruas, especialmente com a liberação da volta às aulas presenciais e a chegada do verão.
"Se a gente tiver um aumento no número de casos em função desse processo de reabertura, a probabilidade de que ocorra um colapso no sistema de saúde é muito grande", disse Diego Xavier, pesquisador em Saúde Pública do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz.
"Para esses passos mais importantes, como volta às aulas, realização de eventos, a gente deveria ter um suporte de atendimento de terapia intensiva que resguardasse esse possível aumento de casos graves, mas temos visto exatamente o contrário, à medida que se avança na flexibilização se tira o apoio extra que havia no começo da pandemia", acrescentou.
Para enfrentar a pandemia, o governo estadual do Rio prometeu construir sete hospitais de campanha com leitos de UTI, mas apenas dois saíram do papel, em meio a um escândalo de corrupção na contratação que resultou no afastamento do governador Wilson Witzel, que está sob investigação por suspeita de desviar ao menos 550 milhões de reais.
Mesmo os dois hospitais, no entanto, já não recebem mais pacientes. Um deles, em São Gonçalo, na região metropolitana, foi fechado, e o outro, no estádio do Maracanã, segue aberto apenas por decisão judicial, mas sem pacientes.
De um total de 264 leitos de UTI na rede estadual no início de junho, atualmente a mesma rede possui 141 leitos, uma redução de 46,5% na oferta. Como resultado, a taxa de ocupação de leitos de UTI para Covid-19 na rede pública no município --que inclui leitos de unidades municipais, estaduais e federais-- chegou a 83%, o maior nível desde o pico da pandemia, em junho.
As autoridades afirmam que não há falta de infraestrutura e que a alta na ocupação se deve à redução no total de leitos, mas especialistas alertam para uma eventual carência diante de uma possível segunda onda da pandemia na capital fluminense. Novos casos decorrentes das aglomerações recentes podem aparecer nas próximas duas semanas, devido ao período de incubação do vírus.
"Não é garantia de que a situação se estabilizou para sempre, ainda tem muita gente suscetível na cidade, se não tiver medidas de contenção adequadas você pode disparar o que se chama de segunda onda", disse à Reuters Américo Cunha, professor do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que compõe o grupo de pesquisa COVID-19: Observatório Fluminense, que monitora a pandemia com foco no Estado do RJ.
Principal atrativo turístico da cidade, o verão de sol escaldante também pode ser um complicador, uma vez que as pessoas recorrem às praias para fugir do calor.
"O Rio vive um momento muito delicado... Como o verão está chegando e não abatemos definitivamente a curva, é muito provável que os casos se elevem no verão gerando impacto na saúde pública a exemplo do que está ocorrendo na Europa, as pessoas saíram durante o verão e houve mais casos. O Rio corre grande risco de uma nova onda", disse o infectologista Roberto Medronho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio e Janeiro e líder do Grupo de Trabalho Multidisciplinar para Enfrentamento da Covid-19 da UFRJ.
Para moradores da cidade, no entanto, a praia não representa um risco maior do que o transporte lotado que são obrigados a enfrentar para ir e voltar do trabalho.
"A gente já fica aglomerado no ônibus e no metrô, que são fechados, para trabalhar, então acho mais do que normal poder aproveitar uma praia e fazer esporte ao ar livre", disse o vendedor Pedro Bittencourt, de 27 anos, após terminar sua corrida na areia de Copacabana.
EXEMPLO NEGATIVO
A Prefeitura do Rio iniciou em junho as medidas de flexibilização do isolamento social, liberando a reabertura do comércio, e posteriormente a vida na cidade foi voltando praticamente ao normal, inclusive com lotação no transporte público, mesmo com um número expressivo de casos de Covid-19.
"Medo a gente tem de ir para a rua e pegar transporte público, mas a solução é se cuidar, álcool em gel, máscara e não dar bobeira", disse o auxiliar de serviços gerais Wagner Santos, que precisa pegar um ônibus e um trem para ir ao trabalho. "Passam alguns muitos cheios e com pessoas apinhadas. Eu espero passar um mais vazio para pegar, mas nem todo mundo faz isso. "
Nos meses de julho e agosto, dados oficiais apontavam uma queda significativa no número de óbitos por semana na cidade, passando de quase 800 na semana de 21 de junho para pouco mais de 200 na semana de 16 de agosto.
No entanto, no final de agosto os números voltaram ao patamar de 400 mortes por semana, quando foram atualizados os dados das semanas anteriores, indicando que a queda, na verdade, era uma estabilidade.
"Estamos no meio de uma confusão. Quando está caindo você encoraja a população que melhorou, mas quando tem aumento você diz que tem uma revisão. No fundo você manteve um comportamento estável, que é diferente da mensagem passada para a população de que está muito melhor", afirmou Xavier, da Fiocruz.
Mesmo nesse cenário, a Prefeitura do Rio já autorizou a volta às aulas presenciais nas escolas particulares --o que bloqueado pela Justiça e foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF)--, liberou a reabertura de cinemas e teatros e cogita até a volta do público aos estádios de futebol.
No caso das escolas, que têm pressionado pela volta, professores e pais de aluno manifestaram preocupação com um retorno precipitado, apontando o risco de aumentar a disseminação. "Nossa luta é pela vida, para não ficar de luto", disse o diretor do sindicato dos professores do Rio, Elson Paiva.
Dados de mobilidade do Google com base na movimentação de telefones celulares apontam uma forte queda no isolamento na cidade, com redução de 17% em locais de varejo e lazer em 8 de setembro na comparação com o comportamento padrão antes da pandemia, contra queda de 40% em 16 de agosto.
"O isolamento aqui até aconteceu durante um tempo, mas a retomada foi muito desorganizada, e como há uma aproximação do prefeito com o presidente, há uma mesma linha de pensamento sobre como se comportar. Quando se libera, a interpretação é que o pior já passou", afirmou o infectologista Alberto Chebabo, referindo-se ao alinhamento do prefeito Marcelo Crivella ao discurso do presidente Jair Bolsonaro contrário ao isolamento social. Na semana passada, Bolsonaro também disse que o Brasil está "praticamente vencendo" a pandemia, apesar de ser o segundo país do mundo com mais mortes, com mais de 130 mil.
No Rio, houve ainda um desalinhamento entre prefeitura e governo do Estado durante a pandemia e, só após o afastamento do atual governador é que os dois entes acertaram que tomarão as medidas em conjunto. As primeiras delas são uma tentativa de evitar o pior.
Depois de alguns finais de semana seguidos com praias lotadas e bares cheios, as autoridades decidiram proibir o estacionamento de carros na orla e venda de bebidas alcoólicas na área externa dos bares após as 21h, e o prefeito da cidade admitiu que gostaria que a situação atual fosse outra.
"Gostaríamos que a curva de velocidade de contaminação estivesse mais baixa do que agora, e não está, porque as pessoas estão esgotadas do distanciamento, os jovens já passaram pelo primeiro momento de pânico e que agora acham que a vida voltou ao normal, mas ainda não voltou, disse o prefeito Crivella.
O recuo representa uma tentativa de reverter o quadro, mas há o temor de que seja tarde demais.
"O número de casos é muito maior do que se imaginava porque não tivemos uma estratégia de contenção da epidemia, a estratégia foi de tratar pessoas de uma doença nova que não tem tratamento. O Rio é exemplo clássico do que se fazer de ruim", afirmou o infectologista Chebabo.