Todo mês de março, Enely da Silva já pensa no próximo fevereiro.
11 meses antes de o Galo da Madrugada encher as ruas do Recife de gente, a costureira de 66 anos já começa a planejar, desenhar e fazer as contas para o próximo carnaval.
Para 2021, os valores já estavam até no papel: os cerca de R$ 16 mil que esperava receber durante o Carnaval ajudariam filhos desempregados, na reforma da casa e até na compra de um terreno perto da praia.
"Toda vez que chego na varanda aqui de casa, eu tenho vontade de chorar. Já daria pra ver as arquibancadas, a decoração, o povo trabalhando nas ruas", diz Enely, com a voz embargada, à BBC News Brasil.
Pela primeira vez nos seus 43 anos de história, o "maior bloco de Carnaval do Mundo", como foi registrado no Guiness Book em 1994, não vai desfilar. Em dezembro, o governo de Pernambuco cancelou oficialmente a festa, em razão da pandemia de covid-19.
A transmissão do novo coronavírus no país nunca chegou a ser controlada e tem piorado nos últimos meses. Em janeiro, o Brasil voltou a superar a marca de mil óbitos por dia, um patamar registrado então pela última vez em setembro. Até esta quinta (11/02), haviam sido contabilizados 236,2 mil mortos e mais de 9,7 milhões de casos.
"Vai ser o sábado mais triste da história do Recife", lamenta Enely, moradora do bairro de São José, onde o bloco nasceu como uma celebração de amigos e passou a ser símbolo e fonte de renda de toda uma região.
Estima-se que o Galo receba, todos os anos, até 2 milhões de pessoas ao longo de seus seis quilômetros de percurso pela capital pernambucana.
Um ano sem o bloco na rua significa menos dinheiro no bolso de milhares de pessoas: de músicos a costureiras, de donos de camarote a catadores de lixo.
Ao todo, o principal bloco do Recife mobiliza 4 mil pessoas contratadas diretamente apenas para o dia do desfile, segundo a organização.
Seu tamanho colossal acaba movimentando milhões de reais, tanto em patrocínios diretos quanto em trabalhos temporários na economia local, como bares, hotelaria, trios elétricos, entre outros setores.
O valor exato desse montante é incerto — o presidente da agremiação, Rômulo Meneses, 71, prefere não falar em números.
"Nesse ano, toda uma cadeia de produção vai ser afetada. Só de músicos são cerca de mil pessoas. O Galo movimenta muita gente, desde pessoas que alugam casas para foliões até as empresas de eventos", revelou Meneses.
'Prejuízo financeiro e emocional'
O dia do Galo da Madrugada tem seu ritual: começa com um café da manhã, a partir das 7h, para dar as boas-vindas ao desfile.
Os carros alegóricos enfeitados com o tema do ano são os primeiros a entrar na avenida. Depois, são quase 30 trios elétricos percorrendo as ruas até as 18h.
Quatro deles pertencem à Status, empresa familiar que desde os anos 1980 aluga os veículos para o bloco. Segundo a empresária Flaviane Souza de Moura, 35, o Carnaval representa 90% do faturamento do ano.
Ela conta que, no início da pandemia, a empresa aderiu a uma ajuda financeira do governo federal para sobreviver por oito meses. Segundo o acordo para participar do programa, a Status agora precisa manter seus 21 funcionários pelo menos até setembro.
"Quando começou a pandemia, a gente jamais imaginava que não teria Carnaval, por isso participamos do projeto de auxílio do governo. Mas, agora, sem o Carnaval, estamos lutando para que a empresa não feche. O prejuízo financeiro e emocional é enorme. Meu sentimento é uma dor no coração", diz a empresária, que tentou participar de outro programa de crédito para o setor, mas não foi selecionada pela instituição financeira que atua na área.
'Tesouro compartilhado'
Fundado como um bloco familiar, em 1977, o Galo quis reviver os antigos carnavais de rua, mas acabou se tornando o maior símbolo da festa em Pernambuco: "Nunca imaginávamos o quanto ele cresceria. Ele começou a dobrar de tamanho todo ano, até chegar ao que conhecemos hoje", conta Rômulo Meneses, fundador e presidente.
Quem estava desde o começo também era Enely. Primeiro, como foliã, e hoje, como parte da cadeia produtiva em torno do bloco.
Suas máquinas de costura começam a trabalhar pra valer todo mês de outubro. Das mãos dela e de ajudantes, saem as fantasias do coral, de músicos e até da diretoria.
"Este ano, eu tive que apertar tudo, cancelar planos, compras. Mas eu ainda tenho minha aposentadoria [como atendente de telemarketing]. Tem gente aqui no bairro que não vai ter o que comer".
Enely encara o bloco como um "tesouro" local que é compartilhado com milhares de pessoas.
Quase todos vizinhos ganham dinheiro de alguma forma, durante o desfile, diz a costureira. Um vende gelo, outro refrigerante, uns alugam os imóveis, outros o estacionamento…
"É uma fábrica de dinheiro. Este ano, é só tristeza aqui".
"Sinto um aperto no peito com o que estamos vivendo. Estou pedindo a Deus todos os dias que não me deixe cair na depressão diante de tudo isso."
O ciclo 'completo' das perdas
O cancelamento do carnaval fecha um ciclo inglório de prejuízos no setor de eventos do Recife.
O primeiro baque foi nas festas juninas, o segundo nas do final do ano e, agora, o primeiro "carnaval" na pandemia.
"O ganho do setor foi zero, fomos o primeiro a parar e seremos o último a voltar", diz Kenyo Lapenda, criador de uma das maiores plataformas para venda de ingressos de Pernambuco, a Ingresso Prime.
Antes da pandemia, a empresa tinha 16 funcionários — hoje, sobraram quatro. O desfile do Galo da Madrugada é um dos melhores momentos para o setor em Pernambuco.
Além do cortejo público, são mais de 40 camarotes privados em terrenos, postos de gasolina e estacionamentos no caminho do Galo. Alguns reúnem mais de 10 mil pessoas, com atrações de peso e ingressos na casa das centenas de reais.
Em 2020, só na Ingresso Prime, foram movimentados cerca de R$ 15 milhões de reais no período de carnaval — desse montante, R$ 6 milhões envolviam apenas o Galo.
A própria organização do Galo da Madrugada tem 18 funcionários contratados durante todo o ano — por ora, os efeitos econômicos da pandemia não afetaram esses empregos.
Para Meneses, porém, um ano sem Galo da Madrugada é um ano "vazio". "Às vezes me pego pensando se isso é mesmo verdade. Estou me sentindo aéreo, meio dopado, meio vazio, com uma tristeza muito grande. Ao mesmo tempo, precisamos pensar em formas de mitigar esses efeitos", diz.
Sem o desfile na rua, este ano o bloco vai realizar algumas lives nas internet. Uma delas também será transmitida pela TV. O bloco também está realizando campanhas de doações para arrecadar dinheiro e alimentos para os profissionais afetados pelo cancelamento.
Na última terça-feira, 9, o prefeito do Recife, João Campos (PSB), anunciou um auxílio emergencial destinado apenas a trabalhadores da cultura afetados pelo cancelamento do carnaval.
O projeto, que segue para a Câmara dos Vereadores, quer destinar R$ 4 milhões para cerca de 160 agremiações com sede na cidade e 900 atrações artísticas, entre cantores, bandas e orquestras que se apresentaram no Carnaval de 2020.