'Sábado mais triste da história do Recife': o prejuízo dos trabalhadores sem o 'maior bloco de Carnaval do mundo'

Sem o desfile do Galo da Madrugada por causa da pandemia, milhares de pessoas que trabalham no blobo ficarão sem dinheiro neste início do ano. O cancelamento afeta a vida de músicos, costureiras, ambulantes e de empresas de eventos, pessoas que dependem do bloco para sobreviver ao longo do ano.

12 fev 2021 - 17h49
(atualizado às 17h53)
Cancelamento afeta a vida de músicos, costureiras, ambulantes e de empresas de eventos
Cancelamento afeta a vida de músicos, costureiras, ambulantes e de empresas de eventos
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Todo mês de março, Enely da Silva já pensa no próximo fevereiro.

11 meses antes de o Galo da Madrugada encher as ruas do Recife de gente, a costureira de 66 anos já começa a planejar, desenhar e fazer as contas para o próximo carnaval.

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Para 2021, os valores já estavam até no papel: os cerca de R$ 16 mil que esperava receber durante o Carnaval ajudariam filhos desempregados, na reforma da casa e até na compra de um terreno perto da praia.

"Toda vez que chego na varanda aqui de casa, eu tenho vontade de chorar. Já daria pra ver as arquibancadas, a decoração, o povo trabalhando nas ruas", diz Enely, com a voz embargada, à BBC News Brasil.

Pela primeira vez nos seus 43 anos de história, o "maior bloco de Carnaval do Mundo", como foi registrado no Guiness Book em 1994, não vai desfilar. Em dezembro, o governo de Pernambuco cancelou oficialmente a festa, em razão da pandemia de covid-19.

A transmissão do novo coronavírus no país nunca chegou a ser controlada e tem piorado nos últimos meses. Em janeiro, o Brasil voltou a superar a marca de mil óbitos por dia, um patamar registrado então pela última vez em setembro. Até esta quinta (11/02), haviam sido contabilizados 236,2 mil mortos e mais de 9,7 milhões de casos.

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"Vai ser o sábado mais triste da história do Recife", lamenta Enely, moradora do bairro de São José, onde o bloco nasceu como uma celebração de amigos e passou a ser símbolo e fonte de renda de toda uma região.

A costureira Enely da Silva vai deixar de arrecadar R$ 16 mil com o Galo da Madrugada
Foto: Arquivo Pessoal / BBC News Brasil

Estima-se que o Galo receba, todos os anos, até 2 milhões de pessoas ao longo de seus seis quilômetros de percurso pela capital pernambucana.

Um ano sem o bloco na rua significa menos dinheiro no bolso de milhares de pessoas: de músicos a costureiras, de donos de camarote a catadores de lixo.

Ao todo, o principal bloco do Recife mobiliza 4 mil pessoas contratadas diretamente apenas para o dia do desfile, segundo a organização.

Seu tamanho colossal acaba movimentando milhões de reais, tanto em patrocínios diretos quanto em trabalhos temporários na economia local, como bares, hotelaria, trios elétricos, entre outros setores.

O valor exato desse montante é incerto — o presidente da agremiação, Rômulo Meneses, 71, prefere não falar em números.

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"Nesse ano, toda uma cadeia de produção vai ser afetada. Só de músicos são cerca de mil pessoas. O Galo movimenta muita gente, desde pessoas que alugam casas para foliões até as empresas de eventos", revelou Meneses.

'Prejuízo financeiro e emocional'

O dia do Galo da Madrugada tem seu ritual: começa com um café da manhã, a partir das 7h, para dar as boas-vindas ao desfile.

Os carros alegóricos enfeitados com o tema do ano são os primeiros a entrar na avenida. Depois, são quase 30 trios elétricos percorrendo as ruas até as 18h.

Quatro deles pertencem à Status, empresa familiar que desde os anos 1980 aluga os veículos para o bloco. Segundo a empresária Flaviane Souza de Moura, 35, o Carnaval representa 90% do faturamento do ano.

Ela conta que, no início da pandemia, a empresa aderiu a uma ajuda financeira do governo federal para sobreviver por oito meses. Segundo o acordo para participar do programa, a Status agora precisa manter seus 21 funcionários pelo menos até setembro.

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"Quando começou a pandemia, a gente jamais imaginava que não teria Carnaval, por isso participamos do projeto de auxílio do governo. Mas, agora, sem o Carnaval, estamos lutando para que a empresa não feche. O prejuízo financeiro e emocional é enorme. Meu sentimento é uma dor no coração", diz a empresária, que tentou participar de outro programa de crédito para o setor, mas não foi selecionada pela instituição financeira que atua na área.

'Tesouro compartilhado'

Fundado como um bloco familiar, em 1977, o Galo quis reviver os antigos carnavais de rua, mas acabou se tornando o maior símbolo da festa em Pernambuco: "Nunca imaginávamos o quanto ele cresceria. Ele começou a dobrar de tamanho todo ano, até chegar ao que conhecemos hoje", conta Rômulo Meneses, fundador e presidente.

Quem estava desde o começo também era Enely. Primeiro, como foliã, e hoje, como parte da cadeia produtiva em torno do bloco.

Suas máquinas de costura começam a trabalhar pra valer todo mês de outubro. Das mãos dela e de ajudantes, saem as fantasias do coral, de músicos e até da diretoria.

"Este ano, eu tive que apertar tudo, cancelar planos, compras. Mas eu ainda tenho minha aposentadoria [como atendente de telemarketing]. Tem gente aqui no bairro que não vai ter o que comer".

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Enely encara o bloco como um "tesouro" local que é compartilhado com milhares de pessoas.

Quase todos vizinhos ganham dinheiro de alguma forma, durante o desfile, diz a costureira. Um vende gelo, outro refrigerante, uns alugam os imóveis, outros o estacionamento…

"É uma fábrica de dinheiro. Este ano, é só tristeza aqui".

"Sinto um aperto no peito com o que estamos vivendo. Estou pedindo a Deus todos os dias que não me deixe cair na depressão diante de tudo isso."

O ciclo 'completo' das perdas

O cancelamento do carnaval fecha um ciclo inglório de prejuízos no setor de eventos do Recife.

O primeiro baque foi nas festas juninas, o segundo nas do final do ano e, agora, o primeiro "carnaval" na pandemia.

"O ganho do setor foi zero, fomos o primeiro a parar e seremos o último a voltar", diz Kenyo Lapenda, criador de uma das maiores plataformas para venda de ingressos de Pernambuco, a Ingresso Prime.

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Antes da pandemia, a empresa tinha 16 funcionários — hoje, sobraram quatro. O desfile do Galo da Madrugada é um dos melhores momentos para o setor em Pernambuco.

Além do cortejo público, são mais de 40 camarotes privados em terrenos, postos de gasolina e estacionamentos no caminho do Galo. Alguns reúnem mais de 10 mil pessoas, com atrações de peso e ingressos na casa das centenas de reais.

Em 2020, só na Ingresso Prime, foram movimentados cerca de R$ 15 milhões de reais no período de carnaval — desse montante, R$ 6 milhões envolviam apenas o Galo.

A própria organização do Galo da Madrugada tem 18 funcionários contratados durante todo o ano — por ora, os efeitos econômicos da pandemia não afetaram esses empregos.

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Para Meneses, porém, um ano sem Galo da Madrugada é um ano "vazio". "Às vezes me pego pensando se isso é mesmo verdade. Estou me sentindo aéreo, meio dopado, meio vazio, com uma tristeza muito grande. Ao mesmo tempo, precisamos pensar em formas de mitigar esses efeitos", diz.

Sem o desfile na rua, este ano o bloco vai realizar algumas lives nas internet. Uma delas também será transmitida pela TV. O bloco também está realizando campanhas de doações para arrecadar dinheiro e alimentos para os profissionais afetados pelo cancelamento.

Na última terça-feira, 9, o prefeito do Recife, João Campos (PSB), anunciou um auxílio emergencial destinado apenas a trabalhadores da cultura afetados pelo cancelamento do carnaval.

O projeto, que segue para a Câmara dos Vereadores, quer destinar R$ 4 milhões para cerca de 160 agremiações com sede na cidade e 900 atrações artísticas, entre cantores, bandas e orquestras que se apresentaram no Carnaval de 2020.

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