Secretária de Temer diz que mudança no combate ao trabalho escravo é 'retrocesso inaceitável'

Secretária nacional de Cidadania e presidente da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, Flávia Piovesan afirma à BBC Brasil que está "perplexa" e não foi consultada sobre novas regras.

17 out 2017 - 17h14
(atualizado às 17h38)
Flavia Piovesan
Flavia Piovesan
Foto: BBC News Brasil

A Secretária Nacional de Cidadania, Flávia Piovesan, disse à BBC Brasil que as mudanças que acabam de ser adotadas pelo governo de Michel Temer no combate ao trabalho escravo são um "retrocesso inaceitável".

Ela, que é também presidente da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), afirmou que o órgão não foi consultado sobre a alteração - e que está "perplexa". "Digo que é inaceitável e que temos que lutar pela revogação dessa portaria em caráter de urgência, porque realmente os danos são acentuados, as violações de direitos são gravíssimas", criticou.

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Piovesan ressaltou, ainda, que a portaria é ilegal, pois contraria a Constituição e o Código Penal Brasileiro. Ela afirmou corroborar a orientação do secretário de Inspeção do Trabalho do ministério, João Paulo Ferreira Machado, para que os auditores não sigam as novas regras.

Em choque com o que prevê o Código Penal, a portaria publicada nesta segunda-feira pelo Ministério do Trabalho restringe a definição de escravidão, o que na prática dificulta a libertação de trabalhadores explorados.

Enquanto a legislação penal prevê que qualquer uma dessas quatro situações configuram situação análoga à escravidão - trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes ou jornada exaustiva -, a portaria exige a presença das duas primeiras para que os auditores possam enquadrar as empresas como exploradores de trabalho escravo.

A portaria estabelece também que as fiscalizações do Ministério do Trabalho agora terão que ser obrigatoriamente acompanhadas pela polícia. Além disso, determina que uma empresa só poderá entrar para a lista suja do trabalho escravo por determinação do ministro do Trabalho, atualmente Ronaldo Nogueira, tirando essa decisão das mãos dos técnicos da pasta.

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As mudanças são uma solicitação antiga da bancada ruralista - e ocorrem na semana em que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara analisa a segunda denúncia contra o presidente Michel Temer no âmbito da operação Lava Jato.

Em nota, o Ministério do Trabalho afirmou que a portaria "aprimora e dá segurança jurídica à atuação do Estado Brasileiro" no combate ao trabalho escravo. "A partir de agora, uma investigação criminal será aberta de forma simultânea à emissão do auto de infração; a Polícia Federal estará inserida nas ações; e as multas terão aumentos que, em alguns casos, chegarão a 500%", disse ainda o posicionamento.

Parte do governo Temer desde o impeachment de Dilma Rousseff, Piovesan sairá em duas semanas para assumir uma vaga na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

"A única coisa que posso dizer, nesse ritual de saída de governo, é que eu fiz o meu melhor. Realmente, eu não contive energia. Da minha parte, me posicionei com integridade", disse.

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BBC Brasil - Qual sua avaliação sobre as recentes mudanças do governo no combate ao trabalho escravo?

Flávia Piovesan - Fiquei perplexa e surpresa com a publicação da portaria. Na condição de secretária nacional da Cidadania e sobretudo na condição de presidente da Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo), queria expressar minha profunda preocupação com essa portaria porque ela simboliza retrocessos inaceitáveis na luta pela prevenção, erradicação e fiscalização do trabalho escravo. Lamentavelmente, fomos todos aqui da Conatrae e da secretaria surpreendidos.

Sobre a minha avaliação, em primeiro lugar, a portaria viola frontalmente a Constituição, viola a legislação nacional, o artigo 149 do Código Penal, e os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, sobretudo os tratados da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

Pela legislação penal brasileira, o trabalho escravo avilta a dignidade humana. E aí que é importante ter inclusive alusão à jornada exaustiva e condições degradantes. São componentes que a nossa legislação prevê, e a portaria vai na contramão e reduz drasticamente o alcance conceitual de trabalho escravo. Ou seja, o trabalho forçado só vai ser caracterizado se houver cerceamento da liberdade.

Não bastando isso, uma segunda preocupação é esvaziar a autonomia dos auditores fiscais, que têm agora que atuar acompanhado da polícia.

BBC Brasil - A portaria inviabiliza o combate ao trabalho escravo?

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Piovesan - Inviabiliza. E até nesse ponto queria aplaudir e dizer que corroboro a manifestação do secretário de Inspeção do Trabalho do ministério (João Paulo Ferreira Machado), que tal como nós expressou a sua perplexidade. Ele pleiteia a revogação e, ao final, orienta os auditores o manter as práticas, afastando a incidência da portaria.

Queria também lembrar que o Brasil foi condenado (pela Corte Interamericana de Direitos Humanos) no caso da fazenda Brasil Verde. Foi o primeiro caso em que houve condenação por afronta ao direito de não ser submetido à escravidão. E, na decisão, a corte expressa a proibição absoluta e universal da escravidão.

Se há direitos humanos relativos, há dois que não são: o direito a não ser submetido à escravidão e à tortura. Nada pode flexibilizar. É absoluto, é irrevogável.

E outro problema é que a nova portaria também coloca em risco a lista suja do trabalho escravo que é um instituto aplaudido reiteradamente pela comunidade internacional na sua efetividade no combate ao trabalho escravo contemporâneo, porque (a portaria) determina que o nome do empregador só vai para o cadastro dos empregadores do trabalho escravo se tiver determinação expressa do ministro do Trabalho. O que é extremamente grave, inaceitável.

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Ou seja, por esses argumentos todos, que rogo, faço apelo para a revogação dessa portaria, por todos esses impactos danosos, lesivos ao direito à não submissão ao trabalho escravo, que é um direito absoluto, universal.

BBC Brasil - Essa portaria denota uma tolerância do atual governo com a escravidão?

Piovesan - Eu teria cautela porque já tive um debate de duas horas com o ministro do Trabalho, justamente porque eu defendi a publicação da lista suja, que no final foi judicializada. Então, o que eu digo é que é inaceitável e que nós temos que lutar pela revogação dessa portaria em caráter de urgência, porque realmente os danos são acentuados, as violações de direitos são gravíssimas.

Seguramente o Ministério Público do Trabalho vai entrar na Justiça. Mas seria bem melhor que houvesse essa revogação.

BBC Brasil - A que a senhora atribuiria a publicação dessa portaria? Por que o governo está publicando essa portaria?

Piovesan - É claro que numa democracia a gente respeita o outro, e é fundamental isso, mas a nossa secretaria sempre tensionou com a posição sobretudo adotada pelo Ministério do Trabalho. As nossas divergências são expressas. E alcançaram um grau elevado na (interrupção da) publicação da lista suja. Nós tivemos uma audiência de duas horas com o ministro. Então, não saberia dizer.

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Acho que sempre há também um lobby forte daqueles que não querem ser responsabilizados pela escravidão contemporânea, mas isso é incompatível com o Estado Democrático de Direito. Nós não podemos acolher esse retrocesso.

BBC Brasil - Mas por que o governo cede a esses lobbies? É porque ele está alinhado com essas bancadas no Congresso? Ou por que o presidente enfrenta uma denúncia por formação de quadrilha?

Piovesan - A minha sugestão será solicitar uma audiência com o Ministério do Trabalho com uma força tarefa integrada pela OIT, pelo Ministério Público do Trabalho. Veja que há dissidência dentro da casa. Como eu mencionei, o secretário de inspeção do trabalho elaborou essa manifestação, a qual eu corroboro.

Antes de responder essa pergunta, eu teria que ouvi-lo (o ministro do Trabalho). Fico devendo essa.

BBC Brasil - A senhora mencionou que não foi ouvida, assim como órgãos do governo que estão diretamente ligados a essa questão. De certa forma, não fica a impressão de que esses órgãos do governo estão fazendo papel figurativo?

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Piovesan - Eu acho que não. Tenho muito respeito pelo Conatrae e acho que tem exercido papel fundamental.

Nós buscamos, do outro lado, intensificar e articular políticas de combate ao trabalho escravo. Com a ministra Cármen Lúcia (presidente do STF), no Conselho Nacional de Justiça, em dezembro passado, nós lançamos um pacto federativo de prevenção e erradicação do trabalho escravo. Foi assinado por mais de 21 gestores (estaduais) que estão criando, em cada Estado, sua própria Conatrae.

Então, nosso compromisso é absoluto e vamos lutar até o fim. Essa luta começou ontem, quer dizer já houve vários embates, mas creio que ontem abriu-se um novo capítulo.

BBC Brasil - Como avalia o trabalho do André Rosno, que acaba de ser afastado do cargo de coordenador nacional de fiscalização do trabalho?

Piovesan - Eu presto meu testemunho público: é um profissional extremamente qualificado, com compromisso firme com a erradicação do trabalho escravo. Quando soube, liguei imediatamente para ele e abri as portas dessa secretaria para ele inclusive.

BBC Brasil - O presidente acaba de sancionar lei que transfere da Justiça comum para a militar o julgamento de homicídios cometidos por militares durante operações especiais de segurança pública em território nacional, medida à qual a senhora também se opunha. A senhora, quando aceitou fazer parte do governo, disse que tinha o objetivo de evitar retrocessos. Está conseguindo?

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Piovesan - Como eu digo, o Estado dos direitos humanos é feito por luzes e sombras. Não é uma luta linear, é complexa, difícil, e (está sendo feita) numa das conjunturas mais desafiadoras, que é essa (atual). A única coisa que posso dizer, nesse ritual de saída de governo, é que eu fiz o meu melhor. Realmente, eu não contive energia. Da minha parte, me posicionei com integridade.

Fiz o meu melhor, quase um ato de civismo. Como você sabe, eu não tenho vínculo com qualquer partido político que não com a causa de direitos humanos, e entendo que direitos humanos é uma política de Estado. É por isso que estou aqui até hoje. Sem direitos humanos, não há democracia nem Estado de Direito, e a gente tem que lutar para evitar recuos e retrocessos.

Eu estou na luta. Acho que nosso movimento ganhou algumas batalhas importantes, perdemos outras, mas os resultados são sempre provisórios. Sou uma pessoa esperançosa. Quem está nessa luta tem sobretudo esperança.

BBC Brasil - Qual sua avaliação sobre o grau de retrocessos desse governo: nenhum, pouco ou muito?

Piovesan - Acho difícil usar (essas classificações) porque a conjuntura é muito complexa, temos o Congresso com a composição mais conservadora que já houve, e como acadêmica sou muito cuidadosa também com tipologias.

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Mas o que deixo é meu testemunho de que tentei lutar até o final: forças não me faltaram e desafios não faltaram também até o final.

BBC Brasil - A senhora falou que ganhou algumas lutas. Quais?

Piovesan - Acho que nós avançamos em alguns tópicos. Lançamos um pacto federativo de prevenção e combate à tortura, os Estados estão sendo fomentados a criar mecanismos e comitês de combate à tortura.

Estamos finalizando o pacto federativo de combate à violência LGBTfóbica. Lançamos o pacto universitário pela promoção de direitos humanos e hoje têm mais de 300 universidades. A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) lançou um edital de pesquisa de R$ 1 milhão para fomentar pesquisa nessa área.

Fizemos campanhas pela diversidade sexual. Estamos lançando agora uma publicação importante sobre trabalho escravo, falando do impacto dessa sentença (da Corte Interamericana de Direitos Humanos) que condenou o Brasil, pois eu sempre vejo condenações internacionais como um convite construtivo para que o Brasil aprenda e possa avançar.

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Então, da nossa parte, do nosso modo, tentamos, num período tão complexo, dar uma contribuição.

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