“Parece que a gente estava em um mundo e agora está em outro”, diz Elias Geraldo de Oliveiras enquanto percorre o vilarejo de Paracatu de Baixo, agora uma cidade fantasma, arrasada pela onda de lama que botou tudo de cabeça para baixo na região seis meses atrás.
O vilarejo foi o segundo distrito de Mariana, em Minas Gerais, atingido pelo desabamento da barragem da Samarco – empresa que tem as gigantes Vale e BHP Billiton como acionárias.
O colapso da barragem do Fundão vomitou um volume de 20 mil piscinas olímpicas em resíduos de produção de minério de ferro que correram cerca de 700 quilômetros até desaguar no mar, na costa do Espírito Santo.
Elias passou seus 43 anos de vida em Paracatu de Baixo. Ao contrário das cerca de 140 famílias do vilarejo rural, ele não aceitou a acomodação temporária oferecida pela Samarco em Mariana, enquanto se aguarda uma definição sobre onde as casas serão reconstruídas.
Ele insistiu em ficar no vilarejo – ainda que ele só exista em sua memória.
Cidade fantasma
O cenário ao redor é mesmo de outro mundo. Ao longo dos meses, a lama secou. Formou uma camada de aspecto meio lunar, um piso avermelhado e arenoso cerca de 3 metros acima do que antes se entendia por chão, cristalizando tudo onde está: tudo fora do lugar, uma desordem que Elias mapeia como ninguém.
“Está vendo aquele telhado ali? Era daquela casa”, diz apontando para o que resta das duas estruturas. A carcaça de madeira repousa a cerca de 20 metros das paredes que restaram. “Quer ver onde foi parar a minha moto?”, pergunta. Sobe morrotes de barro seco até chegar ao que parece o resto de um cômodo, e lá está metade de uma moto enterrada na lama, a cerca de 40 metros de onde estava antes. “Era novinha. Uma moto muito boa.”
Paracatu de Baixo também era uma comunidade “muito boa”, diz. “Era o lugarzinho melhor aqui da região. Fim de semana aqui era cheião de gente. Dia de semana tinha escola à noite, era movimentado.”
É essa lembrança que mantém Elias ali, morando na casa da irmã, localizada na beira da comunidade e que por isso ficou de pé. Alguns poucos vizinhos solitários, não mais que dez, insistem em ficar também, como ele.
Ele descreve de onde viu a onda de lama chegar, gesticulando como se ela novamente estivesse invadindo a cidade. Ao contrário de Bento Rodrigues – o distrito mais atingido pela queda da barragem, onde 19 pessoas morreram –, Paracatu recebeu o aviso de antemão; Elias disse que ajudou a salvar muita gente. Ninguém da comunidade morreu, apesar do cenário apocalíptico.
Ele diz que começou a se acostumar com a destruição. “Vai cicatrizando. A gente vai acostumando, acha que está tudo bem. Mas não está.”
É de noite que a saudade aperta. É muito silêncio.
Solidão
“De noite é difícil. Isso aqui tudo é escuridão. Entendeu? É solitário demais. Você ouve só cachorro urrar, sentindo falta das pessoas. Tem hora que vejo lanternas na escuridão e são pessoas saqueando as casas. A gente fica triste.”
Elias costumava cuidar de uma fazenda vizinha, que foi atingida pela lama. Agora está desempregado. Está usando um jaleco da Samarco, mas nunca trabalhou lá – ganhou em algum momento da vida e usava no trabalho para proteger os braços do sol forte de Minas.
Ele não culpa a empresa pelo desastre, e diz que a Samarco não pode sair de Mariana – cuja economia é sustentada em boa parte pela empresa. Considera que faltou fiscalização das autoridades públicas. “Os outros falavam que essa represa ia arrebentar. Mas a gente não esperava. Confiava na Samarco.”
Enquanto percorre o que restou do vilarejo, ele mostra o bar que tinha o melhor pastel de Paracatu, onde a comunidade se reunia à noite; a creche que tinha acabado de ser inaugurada, tingida de vermelho-ocre pela lama; a escola, que atraía gente de cidades vizinhas para as aulas noturnas; os instrumentos musicais que usavam todos os anos para a festa de folia de reis; e a casa em que cresceu e onde morava com o pai e a madrasta.
É uma mistura de telhas e vigas caídas, cobertores e toalhas cor tingidos de marrom, um fogão enterrado na lama, o capacete da moto de Elias ainda visível no que era seu quarto. Se alguém ainda estivesse lá dentro, a lama estaria até o pescoço.
Família
“Ali era casa do meu irmão, ali era casa do meu irmão, ali, outro irmão...” diz ele enquanto aponta para todos os lados, indicando o que sobrou das casas ao redor. Os vizinhos eram todos parentes. Ele faz a conta na cabeça e jura ter cerca de 30 irmãos, frutos de três casamentos do pai, de mais de 80 anos.
“Fiz questão que meu pai ficasse em Mariana, porque aqui estava sem recurso, sem estrada, sem médico. Mas ele está chateado. Vem quase todo dia aqui visitar. Chora muito”, conta.
Após o acidente, os moradores desabrigados das comunidades atingidas foram levados para abrigos temporários em Mariana, depois a hotéis. Mais recentemente, eles receberam casas alugadas pela Samarco pelo período inicial de um ano.
Comissões de moradores de Paracatu e Bento Rodrigues estão tendo reuniões frequentes com a empresa para definir onde Paracatu será reconstruída. Alguns terrenos no entorno do vilarejo estão sendo considerados.
“Aqui era tudo parente. Se adoecesse um, todo mundo corria e ajudava. A comunidade sempre foi unida. Agora ninguém se vê mais. Está todo mundo separado”, lamenta Elias.
Ele diz não querer uma casa em Mariana - nem consegue pensar, no fundo, em uma casa em qualquer outro lugar longe daquele vilarejo cercado por morros verdes.
“A casa nossa é simples, a gente queria uma casa do mesmo jeitinho. Gostaríamos de refazer as casas no mesmo lugar”, afirma, sentado nos escombros que viraram seu lar. “Mas infelizmente não tem como.”