A Corte analisa nesta tarde se aceita proposta do ministro Luís Roberto Barroso para restringir o foro especial apenas a crimes relacionados ao exercício do cargo público. Atualmente, mais de 54 mil pessoas têm foro no Brasil, diz um estudo da Consultoria Legislativa do Senado - um número que em outros países, segundo um de seus autores, está no máximo "na casa das centenas".
Se a maioria dos ministros aprovar a sugestão de Barroso, uma autoridade que for acusada de crimes anteriores a seu mandato político ou a sua posse em cargo público poderá ser investigada e julgada na primeira instância da Justiça.
A mudança deve ter impacto sobre políticos investigados na operação Lava Jato, já que parte deles é acusada de ter cometido crimes anteriores a seus mandatos, como, por exemplo, o recebimento de caixa 2 (recursos não declarados oficialmente) em campanhas eleitorais.
No entanto, como alguns são acusados de usar seus mandatos justamente para beneficiar ilegalmente empresas doadoras, a eventual mudança pode não afetar esses casos, pois a Justiça poderia interpretar que o crime cometido antes da eleição faz parte do crime cometido no cargo de autoridade.
Entenda melhor abaixo a polêmica em torno do foro privilegiado, o que esperar do julgamento e quais são seus possíveis impactos.
Proteção necessária ou fonte de impunidade?
O foro por prerrogativa de função garante que autoridades - como o Presidente da República, parlamentares, ministros, governadores, juízes, membros do Ministério Público, entre outros - sejam julgadas em instâncias superiores da Justiça, como o STF, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tribunais regionais federais, etc, a depender do cargo do investigado ou réu.
Em teoria, o mecanismo busca impedir ações indevidas contra pessoas que ocupam importantes cargos públicos - e por isso estariam mais sujeitas a perseguições políticas. Outra finalidade é evitar que autoridades usem seu poder para intimidar juízes, procuradores e promotores de primeira instância.
Na prática, porém, o foro privilegiado é visto pela maioria da sociedade como fonte de impunidade, já que ações penais costumam ter andamento bem mais lento no STF - corte que não tem como função principal julgar crimes - do que na primeira instância. Pesquisa Datafolha divulgada em maio mostra que 70% dos brasileiros são a favor do fim desse mecanismo.
Embora não haja um levantamento mundial que permita cravar que o Brasil é o país com mais autoridades com foro privilegiado, especialistas no tema dizem que isso é bastante provável.
Os consultores do Senado João Trindade Filho e Frederico Retes Lima contabilizaram em estudo de abril deste 54.990 com foro especial no país. Desse total, 38.431 têm o direito previsto na Constituição Federal. Outras 16.559 têm o benefício garantido por constituições estaduais, sendo em sua maioria vereadores de municípios de Rio de Janeiro, Bahia e Piauí.
"É muito improvável que haja algum país com mais autoridades com foro do que o Brasil. Dos que pesquisamos, estamos muito acima da média. Países como Argentina, Áustria e México até concedem foro para autoridades estaduais, mas em número muito menor do que aqui", ressalta Trindade.
Por que restringir o foro agora?
Diante da enxurrada de novas causas que podem chegar ao STF, após dezenas de investigações contra parlamentares e ministros serem abertas na operação Lava Jato a partir das delações de executivos da Odebrecht, o Supremo corre o risco de ficar "afogado" em ações penais, quando na verdade sua função primordial é julgar questões constitucionais.
A ideia de restringir o foro foi lançada por Barroso dentro do julgamento de um deputado acusado de compra de votos durante a eleição. Segundo o ministro, o atual sistema "é feito para não funcionar" e se tornou uma "perversão da Justiça".
"Há problemas associados à morosidade, à impunidade e à impropriedade de uma Suprema Corte ocupar-se como primeira instância de centenas de processos criminais. Não é assim em parte alguma do mundo democrático."
O que esperar do julgamento?
O tema é delicado. Em um ato incomum, outro ministro do STF, Luiz Fux, já declarou publicamente que a proposta tem apoio da maioria do Supremo. Já o ministro Gilmar Mendes fez críticas à ideia, defendeu a necessidade de foro e disse que seria função exclusiva do Congresso mudar as regras.
Em aparente reação à movimentação da Corte, o Senado aprovou em primeiro turno, por unanimidade (algo bastante incomum), o fim do foro para quase todas as autoridades, inclusive juízes e promotores, mantendo essa proteção apenas para chefes de Poder - presidentes da República, do Senado, da Câmara e do STF.
Como se trata de uma proposta de emenda à Constituição, no entanto, o texto ainda precisa passar por uma nova votação no Senado e ser aprovado de forma idêntica na Câmara, além de antes ser debatido em um número mínimo de sessões nas duas casas.
Nos bastidores, fala-se que a estratégia é empurrar ao máximo o debate, fazendo mudanças na proposta, para que ela fique "em processo contínuo de aperfeiçoamento".
Em entrevista recente à BBC Brasil, o professor da FGV Michael Freitas Mohallem avaliou que o movimento do Senado de aprovar a proposta em primeiro turno pode servir de justificativa para que algum ministro peça vista do processo nesta quarta, sob o argumento de que é melhor esperar o Congresso avaliar a matéria.
Segundo ele, a proposta de Barroso "é uma tese difícil".
"Nada parece impossível para o Supremo, mas de fato é um pouco fora da normalidade (a interpretação sugerida pelo ministro), de ler entrelinhas da Constituição (para restringir o foro). É fazer uma limonada com uma casquinha de limão", disse.
"Mas pode ser uma questão de sobrevivência institucional. Os ministros sabem que o Supremo vai se afogar nos próximos anos com esses processos da Lava Jato, ficar refém dessa pauta, então pode ser motivação para que alguns deles forcem essa interpretação", acrescentou.
Qual pode ser o impacto se o STF restringir foro?
Se a proposta de Barroso for aprovada, a expectativa é que parte dos casos ligados à Lava Jato poderá ser remetido a varas de primeira instância em todo o país - muitos deles, provavelmente, para a do juiz Sergio Moro, em Curitiba.
No entanto, não há um levantamento do STF de qual seria de fato o impacto. Segundo Trindade, a questão é mais complexa do que parece e a tendência é que o Supremo tenha que analisar cada situação.
"Boa parte dos crimes investigados na Lava Jato teria sido cometida no exercício da função. Para o Supremo especificamente, não sei se vai ter o efeito que eles estão esperando", observa.
Ele cita, por exemplo, o caso de parlamentares acusados de receber propinas ou doações de campanha em troca de uma atuação que beneficiasse empresas. Há casos em que esses supostos crimes teriam sido cometidos em mandatos anteriores. Nesse caso, nota Trindade, o Supremo vai ter que avaliar se o foro valeria apenas para crimes cometidos no curso do atual mandato, ou se a reeleição significaria a continuidade do mandato anterior.
Outro "problema" ainda maior, avalia o consultor do Senado, é que a decisão sobre qual será o foro adequado de investigação vai antecipar uma análise que a princípio só seria feita após a instrução do processo (fase de investigação e produção de provas por acusação e defesa).
"Nas investigações da Lava Jato, tenho suspeitas de caixa dois 'puro', que é 'só caixa dois', de caixa dois com propina e de propina sem caixa dois. Tudo isso é uma questão que eu só vou esclarecer ao longo da instrução processual. Pela proposta do ministro Barroso, essa discussão toda vai vir para o momento da discussão da competência (do juiz). Então, é um problema muito grave", afirma Trindade.
"Por exemplo, poderá haver o caso de um crime que, em tese, não teria relação com o cargo da autoridade. Mas eu vou investigando, investigando e depois descubro que tem na verdade relação com o cargo. O que vai acontecer? Vai subir para o Supremo, então? E os atos praticados (pela primeira instância da Justiça) vão ser válidos ou vai ter que reiniciar o processo todo? São alguns problemas que podemos ter", acrescentou.
Ainda assim, Trindade considera que a decisão do Supremo representaria um passo na direção correta, enquanto o próprio Congresso não aprova uma restrição maior ao foro privilegiado.
"É um caminho, mas me parece um jeito de tentar resolver parcialmente o problema enquanto o Congresso não extingue o foro de vez", disse.