Destinar vagões e ônibus com assentos exclusivos para mulheres é um tipo de violência e de segregação e não impede que episódios de abuso sexual continuem ocorrendo nos espaços públicos, defendem a socióloga Marília Moschkovih e a militante e integrante da Marcha Mundial das Mulheres e da Sempreviva Organização Feminista (SOF) Sonia Coelho.
Para Marília, os vagões exclusivos ou preferenciais para mulheres não podem ser vistos como uma necessidade ou urgência social. Segundo ela, a medida é apenas uma dentre as várias estratégias possíveis para lidar com o problema do assédio em espaços públicos. “Parece-me que, no caso dessa estratégia, ela não muda absolutamente nada as relações de poder em nossa sociedade. Pelo contrário, restringe a circulação das mulheres no espaço público, o que é um absurdo se as consideramos tão cidadãs quanto os homens”, disse em entrevista à Agência Brasil.
Para a socióloga, os vagões exclusivos ainda reforçam que as mulheres fora deles, nos vagões comuns, estão “pedindo” violência. “Restringir a circulação das mulheres no espaço público sempre será uma violência.”
A exclusividade dos vagões para mulheres também esbarraria em outro problema, destacou Marília: o da igualdade perante a lei. “Por princípio, as pessoas têm que ter o direito igual de circular no transporte público. Ao restringir as mulheres em alguns poucos vagões, cria-se também a ideia de que apenas ali é um espaço seguro. Nós queremos que todo espaço público seja seguro para as mulheres”, defendeu a socióloga.
Vagões destinados para mulheres em horários de pico já existem no Rio de Janeiro. Em São Paulo, a ideia foi adotada, sem sucesso, em alguns trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) em 1995, mas agora pode virar lei e passar a vigorar em todo o Estado. Deputados estaduais paulistas estudam um projeto de lei que pretende obrigar as empresas de transporte público urbano de passageiros a reservar um espaço exclusivo para mulheres. O projeto ainda precisa ser votado em plenário e sancionado pelo governador Geraldo Alckmin.
“Essa é uma política que segrega as mulheres, não protege e não enfrenta o machismo que há no transporte coletivo. Não acreditamos que essa é uma medida que vá resolver o problema do assédio e da violência sexual nos transportes. Em primeiro lugar, não queremos viver em uma sociedade que segrega homens e mulheres, brancos e negros e o que seja. Em segundo lugar, entendemos que essa não é a resposta adequada na medida em que não enfrentamos a situação. Temos que ser respeitadas em todos os espaços públicos”, disse Sonia.
Além disso, a militante da Marcha Mundial para as Mulheres acredita que a medida dificilmente funcionaria em São Paulo, principalmente por causa da superlotação. “Há momentos em que há 58% de mulheres no transporte público. Como é que se vai destinar mais da metade dos vagões para as mulheres? É uma medida fora da nossa realidade.”
Outra questão que precisa ser encarada, disse Marília, é sobre a definição de quem é mulher, o que poderia gerar preconceitos. “Homem" e mulher não são categorias fixas, óbvias, nem naturais. Elas foram construídas ao longo da história em nossa cultura e hoje são entendidas como convenções questionáveis por diversas linhas da antropologia e de outras ciências sociais. O Brasil é o País em que mais se mata transgêneros no mundo. Nesse contexto, é ainda mais problemático usar 'homem' e 'mulher' como critério para acesso a um bem que deve ser público, já que as pessoas transexuais tem a sua identidade de homens e mulheres frequentemente negadas por nossa sociedade.”
A desigualdade social, defende Sonia, é um dos fatores que explicam o fato das mulheres continuarem a ser vítimas de abusos e de violência no transporte público. “É um conjunto de elementos. As mulheres ainda vivem uma desigualdade na sociedade e são vistas como objeto. Vivemos ainda em uma sociedade que mercantiliza o corpo da mulher.” Ela também aponta como fatores a lentidão no Judiciário e a impunidade.
“Os homens pensam que com eles não vai acontecer nada, já que a impunidade é muito grande. Além disso, a sociedade justifica a violência”, disse ela, citando os números de uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que apontou que 26% dos entrevistados concordam com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”.
“Mesmo a pesquisa do Ipea tendo errado (a informação inicial informava erroneamente que 65% das pessoas concordavam com a afirmação), mesmo o número sendo menor, ainda há uma visão na sociedade de que as mulheres são seres disponíveis, um objeto”, criticou ela. Ambas defendem que é preciso buscar alternativas e soluções para evitar que a mulher continue sendo vítima de abusos e de violência, inclusive no transporte público.
Segundo ela, o primeiro ponto é discutir o funcionamento do transporte público, que é insuficiente e superlotado. Depois, discutir sobre a cultura em torno do que homens e mulheres podem e devem fazer em nossa sociedade. “Quer dizer: é toda uma mentalidade que precisa ser trabalhada e, sobretudo, uma relação com a sexualidade que precisa ser revista.”
“Quanto ao caso mais específico do assédio no transporte público, é urgente ter uma estrutura sólida de apoio às vítimas. É preciso criar um ambiente em que as mulheres se sintam à vontade para denunciar, sabendo que não serão culpabilizadas pela violência que sofrem. É preciso que os demais passageiros, presenciando uma denúncia, também sejam capazes de, dentro do que é legalmente aceitável e dos princípios de direitos humanos, agirem em apoio à vítima”, defendeu Marília.
Segundo ela, muitas vezes a estrutura institucional que existe para lidar com essas denúncias, como delegacias da mulher e funcionários do metrô, também reproduzem violências contra essas vítimas, tratando-as como culpadas pela agressão sofrida. “É preciso repensar essas estruturas de apoio se quisermos lidar de maneira eficaz com essa questão, para que ela de fato deixe de existir.”
Outra proposta apontada por Sonia é que os ônibus, trens e metrôs tenham câmeras para que seja possível identificar os agressores. Além disso, devem ser feitas campanhas educativas e preventivas nesses ambientes. Uma ideia, disse ela, seria utilizar as TVs já instaladas no transporte público paulistano para orientar as mulheres sobre esse problema. “É preciso ter campanhas sistematicamente. Por que não usamos os meios de comunicação no transporte público para fazer coisas educativas?”, disse Sonia.