Desde que o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff foi deflagrado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), é comum ver um mesmo sobrenome – Dallari – ligado a opiniões opostas sobre o tema.
Ambos juristas experientes, os irmãos Adilson e Dalmo Dallari divergem desde sobre a admissibilidade do pedido de afastamento da presidente até a respeito do rito definido pelo Supremo Tribunal Federal.
A corte determinou na última quinta-feira que os partidos devem escolher internamente seus integrantes para a Comissão Especial que emitirá um parecer recomendando ou não a abertura do processo de impeachment, o que anulou a eleição da chapa ocorrida na Câmara por voto secreto, e que após votação na Câmara o Senado decidirá se haverá ou não um eventual julgamento da petista.
Está longe de ser a primeira vez que eles discordam: o primeiro já elogiou publicamente a atuação do ministro Gilmar Mendes, do STF, do qual o segundo é um dos principais críticos.
Adilson Dallari, professor de Direito da PUC-SP, não só vê fundamentos para o impeachment como escreveu um parecer afirmando que, por ter sido reeleita, Dilma poderia ser processada por acusações referentes ao primeiro mandato, caso das manobras conhecidas como "pedaladas fiscais". Diz ainda ver possibilidade de ela ser punida por "omissão culposa" – o que poderia ocorrer tanto por causa dos desvios na Petrobras e como pelo malabarismo orçamentário, por exemplo.
Sua tese foi usada para embasar o pedido de Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal para tirar Dilma do cargo, aceito neste mês por Cunha. Nele, a presidente é acusada de crimes de responsabilidade fiscal no mandato passado, com as "pedaladas", e no atual, com o prosseguimento das manobras e a assinatura de decretos de abertura de crédito sem autorização do Congresso, além de ato contra a probidade na administração por omissão no caso de corrupção na Petrobras.
Segundo o jurista, seu parecer é técnico e mostra ideias que defende "há pelo menos 20 anos" sobre o tema.
Já Dalmo Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi um dos autores da ação pedindo o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
Contrário ao afastamento de Dilma, diz que seu interesse no caso é "fazer prevalecer" a Constituição. "A minha avaliação é estritamente jurídica. Eu não sou, nunca fui filiado a nenhum dos partidos existentes no Brasil." Para ele, as "pedaladas" não caracterizam crime de responsabilidade fiscal porque não "houve qualquer prejuízo para o erário", e a presidente só poderia ser punida por atos do atual mandato, o que afastaria a acusação por causa dos desvios na estatal.
A BBC Brasil fez três perguntas a ambos sobre o processo de impeachment. Confira.
1) É justificável, juridicamente, afastar Dilma pelos motivos apresentados no pedido de impeachment?
Adilson Dallari - Sim. Esse pedido está fundamentado no meu parecer, que é um estudo bastante grande, mostrando ideias que venho defendendo há pelo menos 20 anos.
Não foi algo que eu fiz agora. É uma linha de pensamento que defendo há muito tempo e está publicada em vários lugares.
O meu parecer, que serviu de base (para o pedido de impeachment), é realmente o que eu penso e o que tenho falado há muito tempo.
Dalmo Dallari - Aquilo (o pedido) não tem a mínima consistência jurídica. A Constituição é muito precisa, muito específica na fixação das condições. E além disso a matéria foi ainda tornada mais pormenorizada na legislação ordinária.
Em nenhuma das propostas, nenhum dos argumentos apresentados como justificativa para o impeachment existe esse enquadramento.
Essas alegações, na minha opinião, são falsos enquadramentos jurídicos, porque não correspondem ao que está na Constituição e na lei.
2) O fato de Cunha alegadamente ter aceitado o pedido por 'vingança' afeta a credibilidade do processo?
Adilson Dallari - Não, porque ele não podia fazer outra coisa. Só fez o que deveria fazer. O fato de ele ser branco, preto, japonês não interessa minimamente nada. A única coisa que ele podia fazer era protocolar o pedido.
O Cunha não decide nada, ele está funcionando aí como uma espécie de "motoboy", ele só entregou. Quem vai decidir é a comissão (especial, criada para analisar o pedido de impeachment).
O que ele pensa ou não pensa não faz diferença nenhuma, não é ele quem vai decidir. A única coisa que ele fez foi a única coisa que ele podia fazer: dar andamento (ao processo).
Dalmo Dallari - Eu acho que simplesmente fica evidente que ele é um aventureiro sem escrúpulos.
O processo de impeachment, em si mesmo, é constitucional, é legal, deve ser respeitado. Mas este processo, esta tentativa de processo é que não tem a mínima legitimidade.
Tudo aquilo que já se sabe de Eduardo Cunha mostra que esse processo é uma farsa, não tem a mínima legitimidade, a mínima base jurídica. É apenas uma tentativa de jogo político, antiético inclusive.
Mas (o fato dele ter aceito o pedido) não faz diferença, o processo é constitucional e legal.
3) Como avalia o que o STF definiu sobre a eleição da Comissão Especial e o processo no Senado?
Adilson Dallari - O padrão da legislação quando se trata de eleger alguém é votação secreta. Quando se trata de decidir sobre uma matéria na qual interessa para o cidadão saber o que o seu deputado está fazendo, a votação tem que ser aberta.
Quando se trata de escolher pessoas, a votação é fechada exatamente para evitar constrangimento. Então acho que deveria ser fechada (no caso da Comissão Especial).
O último ponto é que me deixa estarrecido mesmo. Porque não faz nenhum sentido um segundo juízo de admissibilidade do processo.
Esse juízo, se vamos aceitar ou não a denúncia, é feito pela Câmara. Uma vez que ela admitiu, o Senado tem que processar, dar andamento, julgar. Senão não faz nenhum sentido ter duas Casas. Por que é que vai repetir na segunda o que foi feito na primeira? Não tem cabimento nenhum.
Exatamente para dar mais garantia democrática é que a primeira Casa jaz um juízo de admissibilidade, e a segunda Casa, julga.
Dalmo Dallari - Fiquei muito feliz porque verifiquei que prevaleceu a consciência constitucional. Quer dizer: a maioria (no STF) está realmente cumprindo a sua função de guarda da Constituição.
Alguns pormenores foram bem especificados, como por exemplo no tocante à criação da Comissão Especial. Evidentemente não havia sido respeitada a regra legal. Essa definição de procedimentos feita pelo Supremo mostra que o que tinha sido feito era uma ilegalidade.
Outro aspecto sobre o qual tenho insistido é que há uma demonstração de desconhecimento ou de ignorância ou mesmo de má-fé por alguém que diz que o Senado é obrigado a fazer o processo. Absolutamente não é.
A Constituição expressamente diz que a Câmara tem a parte inicial e apenas sugere, propõe, pode acolher uma proposta no seu âmbito. Entretanto, ela não tem competência julgadora. A competência para julgar é exclusiva do Senado. E competência para julgar inclui aceitar ou a não a autorização para o início do processo.
Veja, é muito importante esta palavra. A Constituição diz que a Câmara autoriza o Senado. Mas não manda, não determina, não ordena. Apenas autoriza. E, havendo a autorização, o Senado é que deve fazer o exame minucioso, preciso, jurídico para saber inclusive se há algum fundamento para que o processo seja instaurado.