Uso de tornozeleira eletrônica cresce no Brasil

8 dez 2015 - 10h25
(atualizado às 11h22)
Foto: Susepe RS

Previsto na legislação brasileira desde 2010, o monitoramento eletrônico de presos experimenta um boom no país, mas não consegue cumprir seu principal objetivo: reduzir a superlotação nas cadeias.

A medida também se espalha sem padrão nacional de uso e em desrespeito à dignidade do detento, que tem dados pessoais expostos e pode passar horas por dia atado a tomadas para recarregar os aparelhos.

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Essas são conclusões é do primeiro diagnóstico nacional sobre o uso de equipamentos tecnológicos - como tornozeleiras e braceletes - para vigiar detentos no Brasil, encomendado pelo Ministério da Justiça ao Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

De acordo com o levantamento, ao qual a BBC Brasil teve acesso com exclusividade, há 18.172 pessoas monitoradas por esses dispositivos no Brasil, sendo 88% homens e 12% mulheres.

Embora o número represente apenas 3% da população carcerária nacional - a quarta maior do mundo (atrás apenas de EUA, China e Rússia), com 607.731 pessoas - o uso desse aparato vem se multiplicando em ritmo acelerado pelo país.

A economia de custos para o poder público ajuda a explicar a disseminação. Enquanto o custo mensal por monitorado varia de R$ 167 a R$ 660 (média de R$ 301), no sistema prisional o gasto por detento vai de R$ 1.800 a R$ 4.000.

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A expansão popularizou a tornozeleira eletrônica, o dispositivo mais usado, na crônica policial brasileira. Mais de dez executivos e empresários denunciados na operação Lava Jato, por exemplo, usam o equipamento 24 horas por dia.

Quem carrega o aparelho não o tira para dormir e nem para tomar banho. Tampouco pode ultrapassar uma área restrita determinada pela Justiça - caso o faça, o dispositivo com tecnologia GPS vibra, emite sons de alerta e comunica a violação à central de monitoramento.

Ao todo, 19 Estados já adotaram a solução - dois deles (Sergipe e Santa Catarina) em fase de testes. E o Ministério da Justiça acaba de anunciar R$ 24 milhões para montar novas centrais de monitoramento pelo país.

Mas problemas verificados nos Estados - e o novo diagnóstico nacional sobre o tema - colocam em xeque a eficácia dessa política como meio de enfrentar o caos nas prisões brasileiras.

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"Temos receio que esse recurso seja entendido como panaceia. É uma medida importante e que funciona, mas temos que implantá-la com bastante cuidado", afirmou à BBC Brasil o diretor-geral do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), Renato de Vitto.

Punição x liberdade

O marco zero do uso dessa tecnologia para controle penal no mundo ocorreu em 1977, nos Estados Unidos. Um juiz de Albuquerque, no Novo México, inspirou-se em um episódio do desenho animado Homem-Aranha em que o herói era monitorado por um bracelete colocado pelo vilão. Encomendou um dispositivo a um perito em eletrônica e determinou os primeiros monitoramentos em 1983 - hoje são cerca de 100 mil presos com esses dispositivos nos EUA.

No Brasil, a lei 12.258, de 2010, introduziu a possibilidade de monitoramento eletrônico em dois casos: saída temporária de preso em regime semiaberto e cumprimento de pena em prisão domiciliar.

No ano seguinte, uma alteração no Código de Processo Penal incluiu o uso das tornozeleiras como "medida cautelar diversa da prisão". Exemplos de outras "medidas diversas da prisão" são comparecimento periódico à Justiça e proibição de acesso a determinados lugares, como bares.

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A ideia era tentar reduzir o alto índice de presos provisórios (sem condenação) no Brasil, que chega a 41% do universo prisional - quatro em cada dez detentos no Brasil são provisórios.

Um terço desses presos provisórios acaba não sendo condenado quando vai a julgamento, o que reforça a condição do Brasil como um dos países que mais encarcera seus cidadãos no mundo - a taxa é de 300 presos por 100 mil habitantes, ante média mundial de 144.

Ocorre que, como o diagnóstico do Pnud mostra, o uso de tornozeleiras eletrônicas no país é determinado como medida diversa da prisão e protetiva de urgência (situações de violência doméstica) - possibilidades reais de esvaziar as prisões - em apenas 12% dos casos.

O uso principal da tecnologia se concentra na fase de execução penal, ou seja, penas que já estavam previstas, e não alternativas à prisão. Do total de presos com os dispositivos, predominam regime aberto em prisão domiciliar (25,9%), semiaberto em prisão domiciliar (21,8%), semiaberto em trabalho externo (19,8%), saída temporária (16,5%), fechado em prisão domiciliar (1,7%) e liberdade condicional (0,1%).

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"Observamos que a monitoração eletrônica não vem se configurando como uma alternativa à prisão, mas como um instrumento aliado aos movimentos de controle social e de recrudescimento do poder punitivo", conclui o relatório.

Sem padrão

O diagnóstico critica a falta de um padrão nacional de atuação em monitoramento eletrônico. Cada Estado, por exemplo, adota seu procedimento caso haja uma violação por parte do preso - em alguns casos, o simples descarregamento da bateria pode mobilizar vários policiais para uma nova prisão, o que poderia ser evitado com um telefonema ao detento.

"A inexistência de consensos básicos na aplicação dos serviços também fomenta respostas pautadas em excessivo controle disciplinar. (...) A adoção de procedimentos que privilegiem a prisão como resposta central a violações podem qualificar os serviços de monitoração eletrônica como arenas de retroalimentação do sistema prisional", conclui o relatório.

O trabalho do Pnud aponta ainda "uma série de problemas" envolvendo proteção de dados nas centrais de monitoramento, como informações pessoais e de localização dos detentos. Não há, por exemplo, uma norma para compartilhamento de informações com a polícia, o que transforma os indivíduos com tornozeleira em "suspeitos permanentes".

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"De forma ainda mais preocupante, em alguns casos, cultiva-se a ideia de que o compartilhamento de tais dados com a polícia é uma prática adequada à monitoração que protege o próprio monitorado (...), o que evidencia violação constitucional quanto à presunção de inocência", diz o texto.

O relatório aponta que o uso da tornozeleira provoca danos físicos e psicológicos, e que a maioria dos Estados não tem enfrentado esse problema. Apenas seis Estados (CE, ES, MG, PA, PI e RS) por exemplo, incluem psicólogos e assistentes sociais nas equipes envolvidas com os serviços de monitoramento.

"É comum ouvir relatos afirmando que sem a atuação desses profissionais - psicólogo, assistente social e/ou técnico em direito - o índice de violação cresce, especialmente porque ajudariam o monitorado a aderir às normas que a nova condição carrega, explicando, num esforço de socialização, mudanças e limitações em suas rotinas decorrentes do uso do equipamento", conclui.

A pesquisa cita casos de presos que precisam comparecer às centrais de monitoramento e passam horas "agrupados e expostos na rua, esperand

o por um atendimento que pode demorar horas." "Sem espaço e estrutura adequada, os monitorados de alguns Estados se acomodam no chão", cita.

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Falhas de segurança

Em fevereiro deste ano, uma equipe da Polícia Rodoviária Federal prendeu, em Porto Alegre, dois homens em um carro com placa clonada e objetos recém-furtados. Um deles era preso com tornozeleira - devidamente envolta em alumínio para bloquear o sinal emitido pelo aparelho.

Casos como esse são comuns pelo Brasil, e não há solução tecnológica até o momento - a ausência de sinal, contudo, é notificada nas centrais.

Para o juiz Sidinei José Brzuska, da Vara de Execuções Penais da capital gaúcha, isso mostra que a tornozeleira não é "salvação da lavoura". "O sistema funciona bem para quem não tem vínculo com criminalidade ou não quer saber mais do crime. Quando o sujeito é ativo no crime, não funciona, ele irá fazer de tudo para burlar", afirmou à BBC Brasil.

Em Minas Gerais, a Assembleia Legislativa do Estado investigou neste ano denúncia de venda de lacres das tornozeleiras dentro da unidade de monitoramento, mas nada ficou comprovado.

Apesar dos problemas, a perspectiva é de continuar a expansão do sistema pelo país nos próximos anos - somados, os contratos atuais de cada Estado já contemplam a capacidade de monitorar 40.431 presos.

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A empresa Spacecom, de Curitiba, é a principal fornecedora do país, com cerca de 90% do total dos contratos. Para Sávio Bloomfield, dono da firma, há "muita desinformação" na mídia sobre problemas técnicos. "O potencial de uso é muito maior", disse.

Renato de Vitto, diretor-geral do Depen, diz que o governo irá manter a consultoria do Pnud para desenvolver soluções para os problemas identificados no diagnóstico. O foco do Ministério da Justiça, diz ele, será usar a tecnologia para reduzir a população de presos provisórios.

"A tornozeleira não é brincadeira, traz marcas de estigmatização. Temos que usá-la com prudência, de forma proporcional às infrações. Quando a utilizamos como medida alternativa a chance de reincidência é dez vezes menor. Evitar o encarceramento nocivo é obrigação do sistema prisional". afirma.

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