A série de reportagens sobre os bastidores da Operação Lava Jato publicadas no domingo (9) pelo site The Intercept Brasil "afeta seriamente a reputação do (ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio) Moro no exterior, bem como a do procurador (Deltan) Dallagnol" e serve de lição para procuradores "deixarem suas opiniões políticas em casa".
Ao mesmo tempo, a falta de clareza sobre a fonte do vazamento de conversas atribuídas a figuras-chave da operação acende um alerta sobre "as motivações políticas de quem vazou as informações" e "a maneira como os dados foram selecionados e interpretados" pelos jornalistas que as divulgaram.
A avaliação é de Ana Janaina Nelson, especialista em Relações Internacionais que trabalhou no governo de Barack Obama como oficial de Relações Exteriores no Departamento de Estado dos Estados Unidos, entre 2010 e 2015, com foco especialmente nas trocas entre Brasil e EUA.
Brasileira filha de americanos, ela hoje atua como pesquisadora do Woodrow Wilson International Center for Scholars, um think tank na capital americana.
Revelações oriundas de vazamentos de conversas privadas entre autoridades estão longe de ser novidade para Nelson, que também trabalhou no Pentágono e no Senado americano.
Enquanto trabalhava para elaborar políticas bilaterais entre EUA e Brasil, ela foi surpreendida em 2013 por uma "bomba" de proporções globais, disparada pelo mesmo homem que acaba de divugar o caso que vem sendo chamado de "#vazajato": o jornalista Glenn Greenwald, que revelou como o governo Obama espionou comunicações de cidadãos americanos e estrangeiros, a exemplo da então presidente Dilma Rousseff.
Os documentos haviam sido obtidos pelo analista de segurança Edward Snowden e divulgados por Greenwald no jornal britânico The Guardian, que ganharia no ano seguinte com essas reportagens o principal prêmio jornalístico dos EUA, o Pulitzer - reconhecimento dividido com o jornal americano Washington Post.
Desta vez, as informações sigilosas divulgadas pelo Intercept, veículo cofundado por Greenwald, envolvem autoridades ligadas à Lava Jato. Segundo diálogos atribuídos a Moro e Dallagnol publicados pelo site, o então juiz federal antecipou sua tendência sobre uma futura sentença, cobrou do procurador novas operações, sugeriu uma mudança de ordem de fases da investigação, defendeu a divulgação de interceptação telefônica ilegal entre Lula e Dilma e discutiu uma eventual resposta a críticas feitas pelo PT à operação.
No mesmo dia da publicação dessas quatro reportagens, Moro, Dallagnol e a o Ministério Público Federal reafirmaram veementemente a imparcialidade da Lava Jato.
"Leitura atenta revela que não tem nada ali apesar das matérias sensacionalistas", escreveu Moro no Twitter.
'Viés político'
A reportagem da BBC News Brasil pergunta a Ana Janaina Nelson o que há em comum entre os dois vazamentos.
"Há um viés político muito forte nos dois. Não se trata de uma simples entrega de informações, há muita análise e interesse politico envolvidos. Neste caso, o viés é favorável a Lula e contrário à prisão dele."
No caso anterior, ela explica sem dar detalhes, o alvo era o governo americano.
"Nas duas situações, as liberações de arquivos e documentos vêm junto com forte apelo político. Isso não é necessariamente um problema se os jornalistas estão tentando ser neutros", diz Nelson.
"O problema é que muitas vezes é feito um grande alarde em torno de informações que não têm nada de nefastas e não são baseadas em fatos. Em outros exemplos, as revelações são importantes, merecem investigação e servem para aperfeiçoar a governos e a democracia."
Ana Janaina cita o anonimato da fonte que coletou os diálogos entre as autoridades brasileiras. "Preocupo-me com quem são as pessoas que agem como fontes destas reportagens. Embora o The Intercept nunca vá revelar, essa informação é fundamental para entendermos por que estes documentos estão sendo liberados, e não outros, e quais são as motivações políticas de quem colheu as informações", diz.
Segundo o site, as conversas estavam em "um lote de arquivos secretos enviados ao Intercept por uma fonte anônima há algumas semanas". O veículo destaca que o material chegou antes da notícia de que o celular de Moro foi invadido por hackers - o agora ministro disse que informações pessoais e outros conteúdos não foram capturados.
"O único papel do Intercept foi receber o material da fonte, que nos informou que já havia obtido todas as informações e estava ansiosa para repassá-las a jornalistas", prossegue o veículo.
Questionada sobre o que nas revelações recentes merece atenção, Nelson destaca "a coordenação entre o juiz e uma das partes" como algo "preocupante".
Ela se refere aos diálogos em que Dallagnol e Moro trocam informações sobre as investigações sobre Lula, discutem detalhes sobre a acusação que seria oferecida pelo Ministério Público Federal e debatem a ordem em que fases da operação Lava Jato deveriam ser disparadas. Segundo as reportagens, Moro teria extrapolou seu papel como juiz ao trabalhar em conjunto com os procuradores para prejudicar Lula.
"Isso é preocupante. Não sou advogada e não sei dizer se o que foi liberado é suficiente para afetar julgamentos e decisões sobre o caso, mas coordenação entre juiz e outras partes é preocupante", avalia.
"Não acho que as revelações possam mudar drasticamente a imagem do Brasil no exterior. Pode ser que amanhã haja coisas mais bombásticas, e falo da primeira revelação. Com o que vimos até agora, Moro se queima. A reputação de Moro é afetada seriamente, assim como a do procurador Dallagnol."
'Deixar opiniões políticas em casa'
Mas para Ana Janaina, o jornalista que revelou um esquema de espionagem do governo americano ao redor do mundo atua "frequentemente como um ativista, antes de jornalista".
"Por mais que, no editorial, eles se apresentem como entidade jornalística fazendo seu trabalho e informando a população, frequentemente não é o caso e eles têm um viés mais ativista. Às vezes eles têm documentos bastante normais e os descrevem com exagero."
A BBC News Brasil pergunta que partes das revelações do site de notícias representariam esse "alarde" que ela aponta.
A pesquisadora prefere não comentar o caso envolvendo a gestão Obama, já que "não pode mais falar em nome do governo".
Na época, diplomatas americanos mostraram desconforto em relação a um trecho de uma apresentação de Powerpoint que citava a Petrobras, entre outras companhias, na série de informações vazadas por Snowden a Greenwald.
O slide, segundo o jornalista, indicaria que a Petrobras estaria sendo espionada - algo que, segundo o Departamento de Estado americano, não poderia ser provado por aquela imagem.
"No caso em particular dessa liberação de documentos no Brasil, por exemplo, não vejo como algo nefasto o debate dos procuradores sobre onde julgar e de que forma julgar o caso do tríplex (do Guarujá). Vejo como estratégia da Procuradoria e da Lava Jato, assim como tenho certeza de que a mesma discussão aconteceu do lado da defesa. Sempre se procura a melhor estratégia", afirma.
Segundo uma das reportagens do Intercept, conversas atribuídas a procuradores sinalizam preocupação eleitoral com a possibilidade de Lula conceder uma entrevista à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, perto da eleição presidencial de 2018. "Uma coletiva antes do segundo turno pode eleger o (Fernando) Haddad", diz uma mensagem atribuída à procuradora Laura Tessler.
Para Ana Janaina, "uma retórica politizada por parte de procuradores é algo desafortunado e mostra o viés político de alguns dos membros da equipe da Lava Jato".
Ainda segundo ela, o comportamento descrito nas reportagens "abre espaço para críticas à investigação e afeta a reputação da Lava Jato".
"É uma lição para futuros procuradores", continua. "Se quiserem fazer bem seu trabalho, terão de deixar suas opiniões políticas pessoais em casa."
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