Violência no Rio: 'Por que não levaram preso?', questiona mãe de jovem morto na operação policial mais mortífera da década no Rio

Parentes de vítimas no Rio denunciam tortura de jovens antes de sua morte em ação policial no Morro do Fallet, que terminou com o maior número de óbitos em 12 anos.

13 fev 2019 - 09h42
(atualizado às 10h25)
Tatiana Antunes contesta as versões apresentadas pela polícia para a morte de seu filho, Felipe
Tatiana Antunes contesta as versões apresentadas pela polícia para a morte de seu filho, Felipe
Foto: ABR / BBC News Brasil

Na quinta-feira de noite, Tatiana Antunes de Carvalho se apressou no fogão diante do pedido do filho: "Faz logo essa lasanha, mãe, estou com fome." Ela pôs a mesa e se sentou com ele e o sobrinho, que morava com a família, sem saber que seria o último jantar com os dois.

Na última sexta-feira, Felipe Guilherme Antunes, de 21 anos, e Enzo Carvalho, de 18, saíram de casa cedo depois de tomar um gole de café mas dispensando o pão que Tatiana lhes ofereceu.

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Poucas horas depois, seus corpos ensanguentados estavam sendo colocados em um carro aberto do Batalhão do Choque. Eles eram dois dos 13 jovens que mortos em uma operação policial nos morros do Fallet, Fogueteiro, Coroa e Prazeres, no último dia 8 de fevereiro - todos criminosos, de acordo com a Polícia Militar do Rio (Pmerj).

No sábado, outros dois corpos foram encontrados na mata no Morro dos Prazeres, elevando para 15 o número de mortos na operação policial - a mais mortífera no Rio desde 2007, quando uma incursão no Complexo do Alemão, na zona norte, matou 19 pessoas.

A Pmerj informou que "criminosos fortemente armados" reagiram à chegada da polícia e foram mortos em confronto.

Em uma reunião emocionada realizada no Morro do Fallet na quarta-feira, porém, moradores e familiares afirmaram que parte dos rapazes havia se rendido e que eles teriam sido executados - e denunciaram casos de tortura, facadas e mutilações dos jovens.

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Tatiana pergunta, ecoando a pergunta feita por tantas outras mães: "Por que mataram? Por que não levaram preso?".

A operação está sendo investigada pelo Ministério Público do Rio, que ouvirá nesta semana os comandantes dos Batalhões de Choque, do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e do Comando de Operações Especiais (COE). A Delegacia de Homicídios da Polícia Civil também está investigando as mortes, e a Pmerj abriu uma sindicância interna para apurar as mortes decorrentes de intervenção policial.

As mortes estão sendo investigadas pela Delegacia de Homicídios da Polícia Civil, que ainda aguarda a conclusão do laudo pericial descrevendo as circunstâncias das mortes, bem como dos laudos cadavéricos descrevendo como os rapazes foram mortos, antes de se pronunciar.

Organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional cobram uma apuração das mortes o mais rápido possível. "Apenas através de uma investigação imediata detalhada, imparcial e independente, é possível determinar a circunstância exata de cada uma dessas mortes", afirmou a Anistia em nota após a ação, ressaltando o histórico de altos números de homicídios decorrentes de intervenções policiais no Rio.

'Cenário preocupante'

O episódio gerou forte preocupação entre grupos de defesa de direitos humanos, atentos a sinais de arrefecimento de violência policial diante de sinalizações dadas pelo novo governador, Wilson Witzel.

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Witzel se elegeu com um discurso de enfrentamento pesado ao crime organizado e defende publicamente o "abate" de criminosos armados de grosso calibre. "Aquele que pega em armas e chama para si a guerra, a guerra deve ter. Como terroristas serão tratados", disse, durante sua cerimônia de posse.

Chão da casa onde suspeitos foram mortos ficou ensanguentado
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Para Pedro Strozenberg, ouvidor da Defensoria Pública do Rio, a letalidade concentrada nesta primeira grande operação do governo Witzel desperta o temor de "um cenário muito preocupante".

"Uma operação com esse patamar de letalidade não pode ser considerada uma ação regular. É preciso que sua legalidade e a sua conduta sejam apuradas. Isso não pode virar um patamar dos novos tempos", afirma.

Ele ressalta a importância de que as investigações da Polícia Civil, do MPRJ e da Corregedoria da Polícia Militar possam apontar com clareza o que aconteceu, e se houve o desvio dos policiais, ou se eles tiveram sua conduta amparada pela lei.

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"Isso para nós é o ponto principal. Não queremos impedir, atrapalhar nem desqualificar a atuação policial. Mas ela tem que ser amparada na lei", ressalta.

'Tristeza e raiva'

Na quarta-feira, cerca de 60 moradores e familiares dos jovens mortos nas comunidades de Santa Teresa se reuniram no Morro do Fallet, com quase 40 representantes de instituições como as Defensorias Públicas do Rio e da União e as comissões de direitos humanos da OAB-RJ e da Assembleia Legislativa do Rio e jornalistas.

O encontro foi marcado por momentos catárticos, relata Strozenberg, com forte emoção, tristeza e raiva, bem como críticas à atuação policial.

Após a operação no Morro do Fallet, diversas paredes ficaram com marcas de tiros
Foto: Reuters / BBC News Brasil

"Os testemunhos foram muito contundentes e muito homogêneos no sentido de que uma parte significativa dessas mortes poderia ter sido evitada, e que a polícia tinha condições de prender e não matar ", resume Strozenberg. "Os moradores não questionavam a atuação da polícia para enfrentar a criminalidade, mas insistiam que a resposta poderia ter sido de mais prisões, e menos mortes."

No ano passado, o Rio teve o número recorde de mortes cometidas por policiais, com 1.532 "mortes por intervenção de agente do Estado" registrados ao longo do ano pelo Instituto de Segurança Pública, órgão de estatísticas ligado ao governo. Foi um forte aumento em relação a 2017, que registrou 1.127 homicídios pela polícia.

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Guerra de facções

Segundo assessoria de comunicação da Pmerj, a operação de sexta-feira foi realizada para intervir "numa guerra entre facções criminosas rivais, que disputam o controle de território naquela região, tendo como principal preocupação a preservação de vidas". A corporação informa que mobilizou suas unidades especializadas - o Batalhão de Choque e o Batalhão de Operações Especiais (Bope) com base em informações das áreas de inteligência.

As informações levaram ao imóvel que será uma das chaves das investigações - uma casa na Rua Eliseu Visconti. De acordo com os depoimentos de moradores na quarta-feira, foi lá que morreram sete das 13 vítimas encontradas na sexta-feira, e foi lá que, na versão dos familiares, os jovens teriam se rendido. Era lá que estavam Felipe Guilherme e Enzo. O imóvel ficou com o piso e as paredes cobertas de sangue e com marcas de tiros.

A Pmerj nega que tenha havido uma rendição, e afirma que os criminosos "reagiram à voz de prisão" e atiraram contra os militares, sendo subsequentemente mortos em confronto. Ressalta ainda que, durante a operação, os policiais apreenderam quatro fuzis, 14 pistolas, seis granadas, três radiocomunicadores, além de carregadores e drogas.

Os corpos das vítimas, todos rapazes com idades entre 15 e 22 anos, foram levados pelo Batalhão de Choque para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no centro do Rio. De acordo com a Agência Brasil, médicos de plantão no hospital na sexta-feira informaram que os 13 jovens já chegaram sem vida.

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A Polícia Militar instaurou um Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar as mortes, medida padrão tomada quando operações resultam em lesão corporal ou morte.

Tatiana contesta as versões apresentadas pela polícia. O laudo de óbito do filho diz que ele morreu no hospital. Mas ela viu fotos dele morto no ladrilho da casa onde houve o suposto confronto, tendo sido arrastado de um local para o outro, aparentemente depois de morto. Ela diz que seu pescoço estava quebrado, e que ele tinha marcas de facadas.

Felipe Guilherme chegou ao Hospital Souza Aguiar com o intestino exposto. Outros jovens tinham marcas de cortes no rosto, registrados em um vídeo feito pela equipe do hospital, ao qual a BBC News Brasil teve acesso.

"Para que essa crueldade? Eu quero uma explicação do Estado. Eu quero Justiça", exige Tatiana. "Que policiais são esses que estão com a farda para matar?"

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Ela tem 38 anos, é mãe de quatro filhos, e Felipe Guilherme era o mais velho. Nasceu e cresceu no Morro do Fallet, onde criou os filhos sozinhos, com o salário de doméstica e de manicure, e com ajuda de sua mãe.

"Eu fui mãe e pai do meu filho. Botei ele na escola, cuidei dele. Você cria o seu filho na maior luta para eles tirarem a vida dele desse jeito? Pelo amor de Deus, eu quero Justiça. Que eles paguem pelo que fizeram. Eu vou brigar e vou botar a minha cara, para eles verem a dor de uma mãe", emociona-se.

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