De origem angolana, ela chegou a planejar uma invasão a Salvador no início do século 19. De acordo com historiador, sua vida foi pouco documentada, de modo que as narrativas sobre ela tendem a ter uma conotação mítica.A exposição Histórias Afro-Atlânticas, realizada em 2018 no Museu de Arte de São Paulo (Masp), resgatou e destacou as produções e o pensamento afrobrasileiro. Entre as personagens que foram trazidas ao público está Zeferina, retratada em quadro homônimo feito pelo artista contemporâneo Dalton Paula.
"Para a exposição, e considerando o legado violento e de apagamento, quis criar uma contra-narrativa a partir da história desses personagens que foram grandes líderes, confabulando uma imagem que oferecesse às futuras gerações uma outra referência do corpo negro", recorda ele. "Como artista, temos a possibilidade, que é muito cara e preciosa, de forjar novas perspectivas de mundo."
Ele mergulhou na história de Zeferina em um trabalho de pesquisa para fundamentar a obra. Conta que se deparou com histórias "de luta dos quilombos que se constituíram no período colonial" e "também aqueles presentes na atualidade, que continuam a construir frentes de liderança em defesa e preservação de seus territórios."
"Conheci Zeferina pelo seu legado à frente do Quilombo do Urubu, na luta por direitos e liberdades, em pleno século 19, na Bahia, onde hoje está situada a cidade de Salvador", esclarece. "Sem dúvidas, para mim, o que é mais marcante em sua trajetória é o fato de ela ser uma mulher em um lugar de liderança. Sua coragem é inspiradora, e sua figura também me lembra as mulheres pretas atuais, que são chefes de família e provedoras."
Quem foi Zeferina
Não se sabe exatamente quando e onde Zeferina nasceu, mas acredita-se que ela tenha origens angolanas e tenha chegado ao Brasil, ainda criança, trazida pela mãe, Amália. Escravizada, logo passou a se destacar como líder proeminente.
Segundo Paula, ela era "reconhecida por sua sabedoria espiritual e habilidades de liderança", já que tinha aprendido com a mãe os "conhecimentos espirituais ancestrais". Zeferina teria então organizado fugas de negros e indígenas escravizados.
O artista destaca ainda que ela "desempenhou um papel crucial na articulação de ataques às propriedades escravocratas" e que chegou a "planejar uma invasão a Salvador" — ideia esta frustrada. "Ela liderou corajosamente a resistência quilombola contra a opressão.
Com um grupo de escravizados fugitivos ela criou o Quilombo do Urubu na região do atual bairro de Pirajá, em Salvador. Sob seu comando, o grupo conseguiu criar uma organização, cultivando a própria comida e praticando rituais de candomblé. "Era um desses quilombos expressivos, que causavam desagregação da ordem social vigente", contextualiza o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Dali, confabulavam e realizavam expedições para resgatar outros escravizados de fazendas da região.
Essas operações de resgate passaram a incomodar mais e mais a elite escravocrata. Em dezembro de 1826, quando os guerreiros quilombolas estavam em Cabula, distrito próximo a Pirajá, uma tropa de 30 soldados foi enviada de Salvador para atacá-los.
"Havia extrema tensão entre quilombolas e Salvador. O quilombo era na periferia da cidade, que estava em expansão e se aproximava do quilombo", contextualiza a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora na Universidade de São Paulo (USP). "Então veio a repressão."
Armados com arcos, flechas, machados e lanças, os quilombolas conseguiram vencer a primeira batalha contra os militares. "Ela [Zeferina] e seu grupo lutaram com o que tinham. Eles não tinham acesso a pólvora e armas de fogo", comenta Machado. "Eles não tinham necessariamente um material bélico significativo. Usavam facas, lanças, instrumentos curtos", acrescenta Reis.
Dias depois, contudo, chegou o reforço e veio o revide. Aí os quilombolas foram derrotados. "O quilombo foi completamente destruído", diz o historiador.
Ele enfatiza que, segundo os relatos da época, as forças policiais encontraram grande quantidade de comida estocada na comunidade. "Isso demonstra que eles estavam em processo de formação de base para se estabelecer com maior longevidade", avalia.
Zeferina foi presa apenas em 10 de janeiro de 1827. Em seu Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, o sociólogo Clóvis Moura (1925-2003), relata que em depoimento de um soldado que participou da diligência ficou registrado que não foi fácil: "a preta Zeferina […] custou bastante a entregar-se", ele declarou, enfatizando que durante a resistência dos quilombolas ela portou-se bravamente, lutando com "arco e flecha nas mãos".
Na prisão, ela foi obrigada a confessar os planos futuros de resgatar mais escravizados, inclusive a abortada ideia de invadir Salvador. "Não havia projeto de tomada do poder. […] ao que parece a luta era pela conquista da liberdade, mas esse e outros episódios envolvendo Zeferina ou o Quilombo do Urubu precisam ser melhor investigados, do ponto de vista da pesquisa histórica", pontua o historiador Petrônio Domingues, professor na Universidade Federal de Sergipe.
Moura afirma que não se sabe quando e onde ela morreu. Outra versões, como a defendida pelo artista Paula, dizem que depois de capturada ela foi executada no Forte do Mar, em Salvador.
Legado
"A história de Zeferina ainda é pouco documentada, de modo que as narrativas sobre ela tendem a ter uma conotação mítica, idealizada, sem respaldos, portanto, em fontes de época, produzidas ao longo da experiência de vida daquela personagem", comenta Domingues. "Há uma memória e uma tradição oral que precisam, ainda, serem cotejadas com fontes arquivísticas."
"Seu legado perdura na história afro-brasileira e se entrelaça com o mito do urubu [nome do quilombo], uma ave que simboliza a conexão espiritual com a África", diz Paula. Ele explica que os africanos escravizados costumavam invocar esse animal "quando precisavam do poder ancestral, acreditando que ele podia voar até a África, reunir energia, o axé, de seus ancestrais, e retornar ao Brasil para fortalecê-los".