Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro deu uma série de declarações polêmicas, que foram alvo de críticas de opositores, entidades e até mesmo de aliados, como o governador de São Paulo João Doria. Na segunda-feira, o presidente afirmou que poderia "dizer a verdade" sobre o desaparecimento do pai de Felipe Santa Cruz, presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que morreu durante a ditadura militar.
No dia seguinte, Bolsonaro afirmou que os documentos da Comissão Nacional da Verdade, que investigou os crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado brasileiro durante o regime militar, são uma "balela". Na manhã desta quarta-feira, 31, Bolsonaro afirmou que não há quebra de decoro em suas falar sobre a morte de Fernando Santa Cruz, pai de Felipe. "Não tem quebra de decoro, quem age dessa maneira perdeu o argumento. A história tem dois lados e não pode valer um lado só", disse.
O Estado perguntou para quatro juristas, entre eles o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, se essas falas poderiam enquadrar o presidente em crime de responsabilidade. Segundo a Lei de Impeachment, de 1950, os crimes definido na lei, "ainda quando simplesmente tentados", são passíveis da pena de perda do cargo, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República. Para lei, é considerado um atentado contra a probidade na administração e, portanto, um crime de responsabilidade "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo".
As recentes declarações do presidente podem ser enquadradas como crime de responsabilidade?
Carlos Ayres Britto, jurista e ex-ministro do STF
Eu sou mais cauteloso quanto a tipificação do crime de responsabilidade. Para caracterizar o crime de responsabilidade não é suficiente um comportamento, uma conduta, digamos, ocasional do presidente. Pelo conjunto da obra é que dá para caracterizar essa incapacidade de conviver com a Constituição. É preciso que o presidente demonstre uma inadaptabilidade à Constituição, um estilo de governo frontalmente em rota de colisão com a Constituição Federal, em gravidade tal que o Congresso tenha que dizer para si: "ou a Constituição ou esse presidente". E é claro que a opção só pode ser em favor da Constituição.
Claro que um estilo já está se desenhando aí, está em formação, mas ainda não está caracterizado um modo de governar de costas para a Constituição, revelando portanto uma inadaptação ao texto Constitucional.
Alberto Rollo, professor de Direito Eleitoral e Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie
Uma frase isolada não dá para tipificar essa conduta, mas acredito que a somatória sim. O problema é que ele está somando essas manifestações ao longo dos dias, das semanas e dos meses. Ele não é só o Jair, ele é o presidente da República, cada coisa que ele fala pode causar benefícios e pode causar prejuízo. Precisa pensar antes de falar, se informar, e parece que no mérito ele está com informações equivocadas.
Então, eu acho que somando uma, duas, cinco, dez falas dele neste nível, ele fica na beira do precipício. Até chegar no precipício tem quilômetros, mas a cada dia e a cada semana ele dá um passo para a frente. Uma hora ele corre o risco de cair. Mas temos que lembrar que o julgamento e a recepção do processo é sempre político. E quem vai ter que fazer esse juízo de valor são os deputados que recebem e aceitam a acusação e depois os senadores que julgam procedente a acusação. Hoje ele tem maioria e não corre risco. Mas até quando?
Rui Celso Reali Fragoso, especialista em Direito Constitucional e ex-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo
Acredito que possa ser interpelado para os esclarecimentos. Neste momento eu só vejo essa possibilidade. Não acredito que possa ultrapassar mais do que isso a não ser algumas responsabilizações de natureza, como dano moral. A primeira coisa é que é absolutamente inapropriado que o presidente da República se refira a situações dolorosas vividas por familiares dos desaparecidos dessa forma.
Em segundo lugar, ele pode até ser interpelado, como me parece que já foi feito, para eventualmente esclarecer os fatos a que ele se refere, quando diz conhecer o paradeiro de Fernando Santa Cruz, até porque foi criada uma comissão há algum tempo, e que ainda existe, para esclarecimentos dessas situações. Acredito que foi inapropriada a forma da manifestação, desrespeitosa principalmente com os familiares das pessoas desaparecidas. Independemente de ser o pai do atual presidente nacional da OAB, com qualquer que fosse seria uma situação de desrespeito.
Belisário dos Santos Jr., ex-secretário de Justiça e Cidadania de São Paulo e membro da Comissão Internacional de Juristas
No limite, até pode. Porque as expressões da lei são extremamentes vagas. A rigor, nos termos da lei, atenta contra a probidade administrativa e, portanto, é crime de responsabilidade proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Ele ignora os deveres do cargo e isso pode, somando o histórico de frases que ele faz questão de anunciar, leva a crime de responsabilidade. É um crime grave porque ele não só ignora os deveres do cargo, mas se opõe à verdade que se estabeleceu pelo Estado Democrático de Direito em relação aos mortos e desaparecidos políticos por conta do Estado, isso já foi estabelecido.
Os civis que têm informações sobre paradeiro de pessoas desaparecidas podem até fazê-lo, mas os funcionários públicos que têm essa informação devem fornecer esses dados e informações, caso contrário poderão ser considerados responsáveis pela omissão e pelos danos causados por ela. Eu acho que é lamentável que uma autoridade da República ignore os deveres do seu cargo e a verdade proclamada pelo Estado no momento democrático, que consta nos inúmeros relatórios, não só da Comissão da Verdade, mas do próprio Ministério dos Direitos Humanos.