O que estão compartilhando: que, com o "fim da privacidade do Pix" promovido pela Instrução Normativa da Receita Federal para monitorar as transações financeiras dos contribuintes, trabalhadores informais seriam taxados com base no valor total de suas movimentações, sem levar em conta os custos da profissão.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Trabalhadores autônomos, aqueles que trabalham por conta própria, fazem a declaração do Imposto de Renda de Pessoa Física por meio do carnê-leão. É um mecanismo que leva em conta os valores recebidos, mas também os custos do trabalho, considerados como despesas dedutíveis. Com base nessas informações, o próprio sistema calcula a renda tributável e o imposto a ser pago.
A Instrução Normativa da Receita Federal nº 2247/2024, que entrou em vigor em 1º de janeiro e foi revogada no último dia 15 tratava apenas da obrigatoriedade de instituições financeiras (como Nubank e PagSeguro, por exemplo) a fornecer dados de movimentações à Receita. Esses dados poderiam ser usados para verificar incompatibilidade entre as movimentações e a renda declarada pelos contribuintes. Vale dizer que os bancos tradicionais continuam a ter obrigação de enviar as informações de movimentação de seus correntistas, mesmo com a revogação da norma.
Além disso, a instrução normativa não previa o "fim da privacidade do Pix". O meio de pagamento é vinculado a uma conta bancária e, assim como as demais transações, tem o sigilo protegido. Ou seja, a Receita não tem informações sobre nomes das pessoas envolvidas nas operações, nem a finalidade delas. Os dados do Pix continuam a ser enviados pelos bancos à Receita, mesmo sem a instrução normativa.
Em nota, a Receita Federal reformou que "movimentação financeira não é renda" e que "não há base legal para taxar movimentação financeira seja ela bruta ou líquida". O autor do post foi procurado, mas não respondeu até a publicação desta checagem.
Saiba mais: Mesmo revogada no dia 15 de janeiro, a Instrução Normativa da Receita Federal continua sendo tema de desinformação nas redes. As principais alegações eram de que o Pix seria taxado e que, com o monitoramento de transações acima de R$ 5 mil mensais (pessoa física) e R$ 15 mil (pessoa jurídica), as pessoas teriam que pagar imposto de renda com alíquota de 27,5%. Mas nada disso é verdade.
Após a revogação, adotada pelo governo para tentar conter o impacto das fake news, há publicações nas redes sociais alegando que a decisão do governo prova que as alegações sobre taxação que tomaram conta da internet estavam corretas. Isso também é falso.
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Autônomos não são taxados com base apenas no que recebem
Assim como os trabalhadores formais, nem todos os autônomos precisam pagar imposto de renda. Se os rendimentos mensais tributáveis forem de até R$ 2.259,20, esses trabalhadores são isentos do tributo. Para saber se a renda chega até esse valor ou ultrapassa, os autônomos fazem a declaração utilizando um mecanismo chamado carnê-leão.
Nele, esses trabalhadores precisam incluir dados do Livro Caixa, incluindo os valores que entram - como o que recebem com vendas, no caso de um feirante, por exemplo - e os que saem. Essas despesas podem ser os gastos inerentes ao trabalho, como compra de material, pagamento de funcionários, etc.
A partir daí, o sistema da Receita irá calcular qual renda daquele trabalhador autônomo ou informal é tributável. "O sistema considera os rendimentos recebidos, as despesas dedutíveis registradas no Livro Caixa, o número de dependentes e a legislação vigente. Se os rendimentos ultrapassarem o limite de isenção e não tiverem despesas suficientes para compensá-los, será necessário pagar imposto", explicou Amaury Rezende, professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto e livre-docente em Contabilidade Tributária pela USP.
Se a renda for menor do que R$ 2.259,20 por mês, ele estará isento do tributo. Se for maior, será submetido à tabela do imposto de renda. A última faixa é de 27,5%, para renda acima de R$ 4.664,68. Mas, como já mostrou o Verifica, ninguém paga efetivamente esta alíquota, já que a porcentagem é aplicada apenas ao valor que excede ao limite de R$ 4,6 mil.
Um trabalhador autônomo pode acabar pagando imposto com base apenas no que recebe, por conta da forma como preencheu o carnê-leão. "Um autônomo que opera na informalidade pode acabar pagando imposto sobre todos os rendimentos recebidos, sem considerar deduções, caso não registre suas despesas no Livro Caixa, já que o sistema não reconhecerá gastos para compensar os rendimentos", apontou Rezende.
Movimentação financeira não pode ser tributada
Um dos argumentos do autor do post investigado é de que, "ao analisar a movimentação [financeira] de forma global, sem a devida análise contábil, o governo pode interpretá-la erroneamente como renda, no caso do faturamento de um autônomo". Procurada, a Receita Federal disse que a alegação é falsa porque as movimentações financeiras das pessoas não estão passíveis de tributação.
De fato, os dados sobre as movimentações financeiras não definem a renda do trabalhador, seja ele formal, informal ou autônomo. A Receita, na realidade, cruza essas informações para identificar inconsistências. "A intenção era de fato monitoramento, não era para ver quanto a pessoa está ganhando. É monitoramento para ver se o que a pessoa declara - ou não declara, no caso daqueles que, pela renda, não seriam obrigados a declarar - é compatível com o que ele movimenta", explicou o economista Luciano Nakabashi, professor do Departamento de Economia da USP em Ribeirão Preto.
"Se você está muito incompatível, a Receita vai entrar em contato. Se você declarou e caiu na malha fina, a Receita entra em contato, você vai ter que explicar. Então, a Receita já faz isso. Ela vê as movimentações bancárias que têm que ser mandadas ali pelas instituições financeiras para a Receita a compara", completou Nakabashi.
Também professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP em Ribeirão Preto e doutor em Contabilidade e Controladoria, Sílvio Nakao explica que a Instrução Normativa da Receita não tratava da tributação de qualquer pessoa, apenas da obrigatoriedade de as instituições financeiras prestarem informações.
"O processo normalmente é o seguinte: uma pessoa, física ou jurídica, faz uma declaração e paga o imposto com base nela. A Receita Federal usa essa informação e exige outras informações para fazer cruzamentos, para verificar se a declaração está correta ou se pode haver indícios de sonegação. Essa é uma informação de cruzamento", disse.
Em nota, a Receita Federal disse que "movimentação financeira não é renda" e que "não há base legal para taxar movimentação financeira seja ela bruta ou líquida". Segundo a órgão, "a tabela do Imposto de Renda se aplica a todos de acordo com a renda efetivamente auferida e não a movimentação financeira". A Constituição Federal (artigos 153 e 154) veda a tributação de movimentação financeira e, para que isso ocorresse, seria necessária a aprovação de uma emenda à Constituição.
Medida não indicava 'fim da privacidade do Pix'
Como já mostrou o Verifica, o monitoramento do Pix e de outras movimentações financeiras não implica em quebra de sigilo bancário. O artigo 11 da Instrução Normativa que foi revogada vedava "a inserção de qualquer elemento que permita identificar a origem ou o destino dos recursos utilizados nas operações financeiras".
Em nota, a Receita disse que "nunca recebeu dados associados ao tipo de operação, seja Pix ou qualquer tipo de movimentação", apenas dados globais, nos termos da LC 105/2001, que trata do sigilo bancário. "É importantíssimo deixar claro: a Receita Federal protege os dados sob sigilo fiscal, o que inclui os dados protegidos por sigilo bancário", disse a nota.
"O sigilo fiscal está previsto no Código Tributário Nacional de 1966. O sigilo bancário está previsto na Lei Complementar nº 105, de 2001, que é a base legal pela qual as instituições financeiras prestam informações os valores mensais globais de créditos, débitos e transferências das contas de seus clientes, bem como as administradoras de cartões informam os valores dos gastos mensais globais de seus clientes", completou.
Com a revogação da Instrução Normativa, que atualizava o monitoramento sobre as transações financeiras, as informações que já eram fornecidas pelos bancos continuarão sendo transmitidas à Receita, com sigilo bancário assegurado.