Em entrevista em Angola, no último sábado (26), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) distorceu uma decisão do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) sobre o caso das "pedaladas fiscais" de Dilma Rousseff (PT) para defender que a ex-presidente deveria receber uma reparação pelo impeachment. Lula disse que o tribunal teria absolvido a sucessora dele, o que não é verdade: o TRF-1 apenas manteve o arquivamento da ação, sem julgar se a ex-presidente cometeu ou não o crime.
Especialistas consultados pelo Aos Fatos explicam ainda que não é correto, do ponto de vista jurídico, dizer que Dilma foi inocentada. Isso porque ela foi condenada na esfera político-partidária: em 2016, o Legislativo condenou a petista sob a acusação de que sua gestão violou a Lei da Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000) ao atrasar repasses aos bancos públicos e editar decretos de gastos adicionais sem autorização do Congresso.
Após Dilma ser cassada, o MPF (Ministério Público Federal) entrou com uma ação para tentar condená-la também na esfera judicial. Essa foi a ação mencionada por Lula e arquivada por decisão do TRF-1, que entendeu que a presidente não pode ser responsabilizada duas vezes pelo mesmo crime.
Abaixo, Aos Fatos explica em detalhes por que a declaração de Lula está errada.
Ao contrário do que afirmou Lula, não é verdade que o TRF-1 absolveu a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) no caso das "pedaladas fiscais". Na última terça-feira (22), a 10ª turma do tribunal julgou uma apelação do MPF contra a decisão de arquivar a ação. Por unanimidade, o colegiado decidiu manter o arquivamento do processo, sem análise do mérito.
Isso não quer dizer, no entanto, que Dilma foi inocentada ou absolvida. Na ação julgada na semana passada, o TRF-1 analisava o pedido do MPF para condenar Dilma e outras pessoas de acordo com a Lei de Improbidade Administrativa (lei nº 8.429/1992).
O tribunal seguiu o entendimento do STF (Supremo Tribunal Federal), que determinou, em 2018, que presidentes da República não estariam sujeitos a um "duplo regime sancionatório". Ou seja, um ex-presidente que já foi julgado e condenado na esfera político-administrativa (julgado pelo Legislativo em um processo de impeachment, por exemplo) não poderia responder na esfera civil (julgada pelo Judiciário).
"A ex-presidente, ao ser enquadrada, à época, na Lei do Impeachment e ter perdido a função pública, parte do pressuposto de que ela já foi punida e não poderia ser novamente responsabilizada, do ponto de vista civil", explicou Vera Chemim, mestre em direito público administrativo pela FGV (Fundação Getulio Vargas), em entrevista ao Aos Fatos.
Para Acácio Miranda, doutor em direito constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), a declaração de Lula é incorreta porque, além de Dilma já ter sido condenada na esfera político-administrativa, o TRF-1 não fez julgamento de mérito: "O TRF não disse se existe ou não existe improbidade. O TRF disse que, processualmente, os elementos ainda não são suficientes para que ela seja julgada".
Relembre o processo
"Pedalada fiscal" é o termo pelo qual são chamados os atrasos de repasses a bancos públicos com o objetivo de ajudar o governo federal a cumprir metas fiscais: o Tesouro Nacional atrasa os repasses para bancos, que assumem o pagamento de benefícios sociais. Desta forma, não há atrasos na distribuição de recursos para os beneficiários, e o governo deixa de registrar um gasto no Orçamento. O problema é que essas operações fazem com que os bancos assumam o pagamento dos benefícios com recursos próprios e, portanto, aumentem os juros.
Conforme levantamento realizado pelo Aos Fatos com base nos dados da Caixa Econômica, Dilma fez 19 "pedaladas" entre o início de seu mandato e outubro de 2015. Outros presidentes, como Lula e FHC, no entanto, também fizeram operações semelhantes, mas em quantidade significativamente menor: a gestão de Lula registrou três "pedaladas", enquanto a de FHC fez quatro. Além disso, o montante das operações de Dilma (R$ 33 bilhões) foi 35 vezes maior do que a dos dois presidentes juntos (R$ 933 milhões).
Confira abaixo uma linha-do-tempo da acusação que culminou no impeachment de Dilma:
- Setembro de 2014: o TCU (Tribunal de Contas da União) passou a investigar a denúncia de que o governo de Dilma Rousseff atrasou o pagamento de benefícios sociais com o objetivo de melhorar temporariamente o resultado das contas públicas;
- Outubro de 2015: o TCU rejeitou as contas de 2014 da gestão de Dilma após identificar distorções fiscais causadas pelas "pedaladas". O ministro relator do caso disse ainda que a ex-presidente seria diretamente responsável pelas operações porque foi ela quem editou um decreto para corrigir as manobras;
- Dezembro de 2015: o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB-RJ), abre o processo de impeachment após a oposição incluir as "pedaladas fiscais" no pedido de cassação. Na época, Cunha disse que Dilma teria descumprido a Lei de Responsabilidade Fiscal;
- Maio de 2016: é protocolada uma ação popular que acusava Dilma e Michel Temer (MDB) de praticarem manobras fiscais ilegais;
- Junho de 2016: perícia realizada pelo Senado em meio ao processo de impeachment afirma que Dilma não realizou as "pedaladas", mas acusa a ex-presidente de ter editado três decretos de crédito suplementar sem a permissão do Legislativo, o que também configuraria crime de responsabilidade;
- Agosto de 2016: o Senado, por 61 votos a 20, condena Dilma por crime de responsabilidade. A petista, então, tem seu mandato cassado e Temer assume a Presidência do Brasil. A Casa, no entanto, em uma segunda votação, decidiu manter os direitos políticos da ex-presidente. O placar final foi 42 votos pela perda dos direitos contra 36 votos pela manutenção. Dilma só teria os direitos cassados em caso de maioria absoluta (54 votos favoráveis);
- Dezembro de 2018: o MPF entrou com uma ação na Justiça Federal conta a ex-presidente Dilma e outras pessoas ligadas às "pedaladas" para pedir a cassação dos seus direitos políticos e o pagamento de uma multa;
- Março de 2022: a ação popular protocolada em maio de 2016 tem seu processo extinto pelo TRF-2 sem resolução de mérito;
- Setembro de 2022: a Justiça nega a ação de improbidade administrativa contra Dilma e Mantega movida pelo MPF em dezembro de 2018. O juiz Frederico Viana, da 4ª Vara Federal seguiu a tese do STF e entendeu que os dois não poderiam ser processados por improbidade administrativa porque presidente e ministros não podem responder por crimes previstos na Lei de Improbidade, mas, sim, crimes de responsabilidade. O processo, então, foi arquivado;
- Agosto de 2023: o MPF recorreu da decisão do juiz, mas a turma do TRF-1 rejeitou o recurso e manteve o arquivamento da ação.
Outro lado. Aos Fatos entrou em contato com a assessoria de imprensa do presidente Lula na tarde desta segunda-feira (28) para que eles pudessem comentar a checagem. Não houve resposta até a publicação deste texto.
Referências:
1. YouTube (PT)
2. STF
5. O Estado de S. Paulo (1, 2 e 3)
7. Poder360
8. Aos Fatos
10. Conjur
11. JOTA