Sem nenhuma mudança aprovada pelo Congresso na legislação eleitoral a tempo de valer para o pleito de 2024, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) discute publicar novas resoluções, sobre temas como desinformação e uso de inteligência artificial nas campanhas, que valeriam já para a disputa municipal do ano que vem.
As resoluções da Justiça Eleitoral têm validade imediata e podem ser publicadas em qualquer período, sem a obrigação de serem aprovadas um ano antes da disputa, prazo constitucional conhecido como princípio da anualidade.
- Entre outubro de 2021 e novembro de 2022, o tribunal publicou 62 resoluções;
- Dessas, 45 tratavam de regras e procedimentos válidos para o pleito de 2022;
- Entre elas, 26 editaram resoluções anteriores e 19 eram inteiramente novas.
A atuação do TSE é alvo de críticas que apontam ativismo judicial e extrapolação de atribuições. Em entrevista recente ao Roda Viva, o deputado Marcos Pereira (SP), presidente nacional do Republicanos e primeiro-vice-presidente da Câmara, citou resolução que estabeleceu a obrigatoriedade de alocação de recursos de partidos em campanhas de candidatos negros como exemplo de "exagero" da corte.
"O que se tem que tomar cuidado é quando a Justiça Eleitoral acaba, de certa forma, legislando e criando normas e regras", disse o parlamentar. A reportagem entrou em contato com o deputado a respeito da declaração, mas não teve resposta.
Para Vânia Aieta, especialista em direito eleitoral e professora da Uerj, a atuação do TSE está dentro da legalidade. "Essa atividade legislativa que as resoluções têm é uma atividade atípica da Justiça Eleitoral — mas lícita e prevista no direito eleitoral —, que não pode substituir a importância e nem o protagonismo e a primazia do Poder Legislativo para legislar. Porém, se ela tem como paradigma normas já postas e a partir dali aprimora, aí ela pode sim colocar em resolução", ela diz.
Um dos principais pontos normatizados pelo TSE por meio de resoluções é o combate à desinformação no contexto eleitoral, uma vez que as leis que tratam desse tema são insuficientes.
- Desde 2018, o Código Eleitoral (lei 4.737/1965) recebeu apenas dois dispositivos com o intuito de combater a desinformação;
- Em agosto de 2019, o Congresso derrubou veto do então presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre a lei 13.834/2019;
- A norma trata da denunciação caluniosa eleitoral e impõe pena de 2 a 8 anos de prisão, além de multa, para quem fizer denúncia falsa, com fins eleitorais, que resulte na abertura de investigação contra um candidato;
- Já em 2021 foi aprovada a lei nº 14.192/2021, que acrescentou ao Código Eleitoral a proibição de divulgar "fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado";
- Esse texto prevê pena de detenção ou multa também para "quem produz, oferece ou vende vídeo com conteúdo inverídico acerca de partidos ou candidatos" e prevê agravantes de pena — por exemplo, quando o conteúdo menosprezar ou discriminar a condição de mulher ou a cor, raça ou etnia de um candidato;
Porém, as regras tratam apenas de desinformações sobre candidatos e partidos. Para o combate de mentiras que atacam o próprio sistema eleitoral, é a Justiça quem tem assumido a linha de frente.
"No campo eleitoral, o TSE tem tentado, por meio das resoluções, inovar com regras que tentam suprir essa lacuna [de combate à desinformação]. Apesar de necessário e muito bem intencionado, eu tenho uma crítica, pois o poder regulamentar da Justiça Eleitoral não pode criar novas hipóteses", avalia a advogada Luiza Portella, especializada em direito eleitoral.
Em dezembro de 2021, o tribunal incluiu nas normas de propaganda eleitoral a proibição da "divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos".
Às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 2022, o TSE publicou uma nova resolução sobre o tema, proibindo o compartilhamento de informações falsas mesmo em contextos fora de propaganda. A norma também facilitou a remoção de conteúdos já julgados como falsos ou enganosos.
Embora não estejam previstos no Código Eleitoral, os ataques às urnas e ao processo eleitoral podem ser entendidos como afronta à Constituição, explica Portella. Apesar de ser possível usar o texto constitucional para defender o processo eleitoral, não há clareza na legislação sobre os meios para atingir esse objetivo — e aí entram as resoluções da Justiça Eleitoral.
Para a advogada, a publicação de normas em ano eleitoral gera insegurança jurídica para as campanhas. "Começa o jogo com uma regra e depois não vale mais. É como se começasse uma partida de futebol e de repente virasse futevôlei", compara.
Silvana Batini, procuradora-regional da República e professora de direito eleitoral da FGV Direito Rio, discorda dessa crítica. "As resoluções do TSE têm em vista a otimização do processo eleitoral em si e a necessidade de preservação desse processo. Então, às vezes elas têm que vir com uma velocidade maior. Isso não fere o princípio da não-surpresa", avalia. Ela explica que, por não inovarem, as resoluções do TSE não precisam seguir o princípio da anualidade.
PREENCHENDO LACUNAS
Entre os pontos em que se espera uma normatização por parte do TSE para o próximo ano está o impulsionamento de conteúdo em redes sociais e o uso de inteligência artificial por campanhas políticas.
- O primeiro ponto já foi tratado em duas resoluções publicadas no ano que antecedeu as eleições de 2022;
- Uma delas regulamentou o impulsionamento de conteúdo na pré campanha;
- A outra proibiu a veiculação paga de conteúdos eleitorais nas 48 horas que antecedem o pleito;
- Já a questão do uso de inteligência artificial está no vácuo regulatório tanto por parte do Legislativo quanto do Judiciário.
Para Vânia Aieta a tendência de atuação do TSE deve se manter frente aos novos desafios tecnológicos. "O tribunal vem se preparando pesadamente, sobretudo no enfrentamento das plataformas e das dos canais de mensageria desde 2018", avalia.
Além disso, em 2024 o tribunal precisará adaptar resoluções publicadas para as últimas eleições presidenciais para o contexto municipal. Entre elas está a norma que facilitou a remoção de conteúdos sabidamente inverídicos sobre o processo eleitoral das redes sociais.
"As resoluções de combate à desinformação do ano passado foram concebidas por uma eleição presidencial em que o TSE estava no comando. Mas as eleições do ano que vem os juízes eleitorais de primeiro grau é que vão conduzir. Isso vai gerar uma certa dificuldade pra gente imaginar como é que cada um deles vai poder agir no combate à desinformação", pontua Batini. Para ela, essa questão também deverá ser disciplinada via resoluções.
Outros vácuos legislativos, como os deixados pela minirreforma eleitoral ainda não aprovada pelo Congresso, não devem ser preenchidos por falta de consenso. "Eu acho difícil o TSE inovar diante das lacunas", avalia Portella.
Mas isso não preocupa Aieta, que acredita que o arcabouço eleitoral é suficiente. "As normas que nós temos são absolutamente passíveis de interpretação sem que se faça qualquer extrapolação dos limites que o Judiciário deve ter."
Referências:
1. YouTube (Roda Viva)
3. Senado