No século 16, a cidade francesa de Estrasburgo (então Sacro Império Romano-Germânico) era um movimentado centro comercial. Suas feiras eram frequentadas por pessoas de toda a Europa. Contudo, em julho e agosto de 1518, o local teve muito mais movimento - e não foi por motivos econômicos.
Conforme afirmam historiadores, tudo teria começado com uma mulher. Ela saiu de casa, provavelmente em 14 de julho ou algum dia próximo, e começou a dançar. Os relatos da época dizem que ela não parou por seis dias. Em uma semana, outras 34 pessoas começaram a se mexer de maneira ininterrupta. Era a eclosão de um dos casos mais curiosos da história da medicina: a epidemia de dança de 1518.
A "praga" tomou conta das ruas da cidade francesa e se tornou um problema para a nobreza e a burguesia, que consultaram os médicos da época. Após as causas astrológicas e sobrenaturais (que eram levadas a sério) serem excluídas, os especialistas chegaram à conclusão que o problema era natural, causado por "sangue quente" (para a medicina ortodoxa da época, poderia ocorrer um aquecimento do cérebro que causaria loucura). O tratamento: dançar, dançar e dançar - até as vítimas recuperarem o controle do corpo.
Salões e mercados foram abertos para as vítimas. Dançarinos profissionais e músicos foram chamados para mantê-los mexendo. Dia e noite, as pessoas requebravam freneticamente, sem parar. Se o doente enfraquecia, desmaiava, cambaleava ou diminuía o passo, o ritmo da música era aumentado. "Em um mercado de grãos e uma feira de cavalos, as elites criaram espetáculos tão grotescos quanto telas de Hieronymus Bosch retratando a loucura humana ou os tormentos do inferno", diz em artigo John Waller, professor de história da medicina da Universidade do Estado de Michigan e autor de livros e outro textos sobre esta e outras pragas de dança.
Não foi o primeiro caso de praga de dança registrado. Antes de Estrasburgo, pelo menos outros sete surtos ocorreram na Europa. Mas Estrasburgo teve maiores proporções. No final de agosto, seriam mais de 400 "infectados". Muitos mortos de tanto dançar - literalmente. "Nós não temos meios de saber quantos morreram - algumas crônicas dizem 'vários' e as autoridades da cidade foram suficientemente alertadas para parar toda a dança pública, tendo antes encorajado isso. É também plausível que as fatalidades resultaram de dançar sob o auge do calor do verão e raramente se parar para comer ou beber", diz o historiador ao Terra.
Após a primeira estratégia ter sido um desastre, as autoridades decidiram que o problema não era uma doença natural, e sim uma maldição enviada por um santo (para o pensamento do final da Idade Média, que persistia na região, os homens santos não apenas ajudavam contra certos males, mas também poderiam usar as doenças contra pecadores). O escolhido foi são Vito, conhecido por ajudar epilépticos.
A associação com o santo vem de outros casos de praga de dança. O primeiro conhecido foi na Suíça, quando dois surtos ocorreram em prédios religiosos no século 15, no dia seguinte ao de são Vito. Em 1518, a associação já estava bem conhecida.
As vítimas então passaram por uma espécie de cerimônia. Foram calçados nelas sapatos vermelhos e os dançarinos foram despachados para um santuário dedicado a Vito nas montanhas. Eles ficaram ao redor de um altar com as imagens do santo, da Virgem Maria e do papa Marcelo. Nas semanas seguintes, a epidemia perdeu força até exaurir, com os doentes recuperando o controle do corpo.
Mas fica um pouco difícil acreditar que, repentinamente, um grupo de pessoas seja afetado por uma "praga de dança". Dá para confiar nessas histórias? Segundo Robert Bartholomew, sociólogo da Universidade James Cook (Austrália) , "as dançomanias (como também são chamadas) são bem documentadas e foram descritas em numerosas crônicas medievais europeias que continham descrições de testemunhas. Além disso, diversos médicos do período escreveram sobre isso. Sendo assim, não há dúvida de que ocorreram - a questão mais relevante é: por quê?"
Causas e teorias
Diversas são as opiniões sobre o que levou centenas de pessoas a saracotear freneticamente pelas ruas de uma cidade francesa no início da Idade Moderna. Uma delas é de que o problema teria causa química ou biológica. O principal "suspeito" é a ferrugem dos cereais, um tipo de fungo que ataca plantações. Segundo Waller, essa possibilidade foi descartada, pois, apesar de o fungo causar convulsões violentas e ilusões, ele não leva a movimentos coordenados que duram por dias.
Outra causa seria a peste negra. A dança seria uma resposta à dor extrema causada pela doença nas vítimas. Segundo Robert Bartholomew, o problema aí é que a data não encaixa com as de surtos da peste.
Para o historiador John Waller, é necessário entender o contexto da época. As décadas que precederam a epidemia, afirma, foram notáveis pela severidade - mesmo em um período em que a população era acostumada com o medo e a privação. Ocorreram momentos de grande penúria em 1492, 1502 e 1511. Invernos rigorosos, verões abrasadores, granizo e tempestades de neve acabaram com as plantações - desastres que atingem mais a população pobre da cidade. Além disso, os senhores de terra aumentavam os impostos agressivamente e decretavam diversas proibições à população - como pescar e caçar em suas posses, o que apaziguaria a fome.
Em 1516, um verão escaldante acabou com as plantações e o preço do pão disparou. As pessoas gastavam suas economias para pagar pela comida. O inverno que se seguiu foi rigoroso e muitas pessoas morreram de fome. Doenças afligiam o povo e eram consideradas castigos divinos. Um relato da época conta que um orfanato ficou lotado com filhos de vítimas da varíola.
Segundo o historiador, o medo e a angústia eram gerais na população mais pobre, que acreditava em qualquer rumor místico. Além disso, a maldição do santo já era bem conhecida na Europa. "Que são Vito venha para você" ou "que Deus lhe dê são Vito" eram maldições conhecidas na época.
A pressão física e mental, diz Waller, tornou as pessoas mais suscetíveis a sugestões. Quando elas viram pessoas "amaldiçoadas" por são Vito, acreditaram também que elas eram amaldiçoadas e se uniram inconscientemente. A ação das autoridades, de incentivar a dança das vítimas em locais públicos, fez com que a epidemia só se espalhasse ainda mais.
"A praga de dança foi uma expressão patológica de desespero e medo religioso", diz Waller. Essa explicação se aplicaria aos demais casos. Em 1374, por exemplo, antes de a praga ser atribuída a são Vito, as vítimas acreditavam terem sido amaldiçoadas pelo diabo ou por são João.
Bartholomew tem outra visão. "Em teoria, muitos especialistas pensam que (as dançomanias) foram uma resposta catártica reprimida por estresse associado a pragas, fome e a peste negra, especialmente a última. Eu discordo. Eu sou um dos pesquisadores que tem uma explicação diferente. A de que essas pragas são consequências de crenças religiosas nas quais as pessoas pediam favores divinos através da dança", diz.
O sociólogo diz que relatos da época afirmam que as pragas de dança começavam com grupos de peregrinos que chegavam às cidades atingidas. Essas procissões eram marcadas por gritos a santos e danças pelos participantes. Ao longo do percurso, os moradores acabavam se unindo à dança, que se tornava frenética por parte dos fervorosos.
Para Waller, há um problema com esta hipótese: as vítimas não demonstrariam prazer em seus atos. Elas implorariam a outras pessoas e padres por ajuda. As expressões em suas faces eram de medo e desespero.
O fim repentino
As pragas de dança ocorreram durante a época final da Idade Média e desapareceram. Estrasburgo foi o último grande caso e até o final daquele século teriam sumido por completo.
"Não está inteiramente claro por que esses surtos pararam no final do século 16. É sensato assumir que como a crença nas maldições de santos enfraqueceram lentamente, elas não poderiam mais surgir. É também provável que com o estável crescimento do nível de instrução e o aumento, apesar de gradual, de uma mentalidade mais laica entre os educados, esses surtos não ficaram fora de controle porque as autoridades davam menor créditos às crenças populares", diz Waller.
Para o historiador, fica uma lição com a epidemia de dança. Por mais sobrenatural e inacreditável que o caso pareça, ele é um fenômeno psicológico que "nos lembra da inefável estranheza do cérebro humano".