Pelo menos onze Estados admitem que estão com os estoques dos chamados kits de intubação em níveis críticos ou abaixo dos patamares recomendáveis para a medicação e tratamento de pacientes graves de covid-19. Na maioria dos casos, a previsão é de que os itens armazenados durem mais quatro a cinco dias, de acordo com o consumo. Por causa da escassez, hospitais de Minas estão paralisando atendimentos, o que também tem ocorrido em cidades paulistas. No Sul, as unidades estão se organizando para importar os remédios sem depender do governo federal.
Esses remédios garantem que o paciente seja intubado sem sentir dor e sem tentar arrancar o tubo em reação involuntária. Os Estados com maior risco de falta de medicamentos são Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio, Minas, Rondônia, Roraima, Pernambuco, Tocantins, Acre e Amapá. Ainda não há falta total dos remédios, mas os níveis estão longe do ideal. "Os estoques são críticos, todavia, não há desabastecimento", explica a Secretaria de Saúde do Tocantins.
Em Minas, das nove cidades da região metropolitana de Belo Horizonte que têm UTIs, cinco enfrentam escassez ou já não têm mais medicamentos necessários. O Hospital São José, em Ituiutaba, suspendeu temporariamente as internações de pacientes graves. Dos cinco remédios necessários, a unidade que atende parte do Triângulo Mineiro recebeu apenas um. "As dificuldades vêm desde o mês de fevereiro. O problema se agravou porque os fornecedores não têm os medicamentos", diz a farmacêutica do hospital Kátia Ferreira.
No Paraná, Rogê Costa, superintendente administrativo do Hospital Angelina Caron, afirma que os principais itens dos protocolos para intubação e manutenção dos pacientes em ventilação mecânica estão zerados. Os substitutos vão durar 5 ou 7 dias. "Não existe previsão de abastecimento por parte dos laboratórios e distribuidores, que colocam os pedidos em fila de espera", diz o executivo do hospital que possui 77 leitos no total para covid, 51 de UTI e 26 de enfermaria. "Quando recebem as medicações, eles nos encaminham o que for possível", revela.
O desabastecimento dos medicamentos do kit intubação tem de ser dividido em duas frentes, opina o médico Márcio Sommer Bittencourt, que atua no centro de pesquisa clínica e epidemiológica do Hospital Universitário da USP. "No desabastecimento relativo, quando acabam as drogas mais usadas, como, por exemplo, o Midazolam, a gente substitui por uma droga parecida, como o Diazepam. É uma readequação das medicações, uma mudança de protocolo, que tem um impacto clínico mais limitado. Na prática, a gente pode demorar mais para extubar o paciente, por exemplo", explica.
Exemplos dessa prática estão no Brasil todo. No Ceará, a Unimed Fortaleza afirma que vem trabalhando "com o uso de medicações alternativas e realizando um esforço conjunto entre a equipe de intensivistas e de anestesistas na definição do esquema de sedação mais adequado a cada paciente, respeitando o perfil clínico de cada um".
O segundo problema, continua Bittencourt, é a falta absoluta dos medicamentos. "Isso acontece quando temos de usar drogas de terceira ou quarta escolha. Nesses casos, você pode não conseguir sedar, intubar ou ventilar o paciente. Isso pode aumentar a mortalidade e diminuir a qualidade da assistência. O paciente vai ficar com dor e sofrer no processo. Acho que ainda não temos o desabastecimento absoluto nos Estados", diz o especialista.
Em maior ou menor grau, a escassez de medicamentos traz inúmeros reflexos, dentro e fora dos hospitais. O Hospital Nossa Senhora das Graças, no Paraná, interrompeu o processo de ampliação dos leitos de covid - hoje são 32 de enfermaria e 50 de UTI. "Nossa última ampliação foi em março, com mais sete leitos no pronto-socorro. Depois, tivemos de parar por conta da dificuldade de adquirir medicamentos", diz o diretor Flaviano Ventorim.
Em Minas, cirurgias eletivas, tanto na rede pública quanto na particular, estão suspensas desde a metade março para um controle mais efetivo do estoque de medicamentos para o tratamento da covid.
De maneira quase unânime, os Estados afirmam que o avanço da segunda onda da covid-19 no Brasil aumentou o consumo de insumos hospitalares e remédios como os anestésicos, relaxantes musculares e neurobloqueadores. Na opinião dos médicos, esse aumento do consumo está relacionado ao novo perfil dos pacientes acometidos pela covid. Pacientes mais jovens, entre 40 e 50 dias, demoram mais a procurar atendimento médico e, por isso, chegam num estado mais grave, exigindo maior tempo de internação e mais medicamentos.
Importação
O Ministério da Saúde está com dificuldades para refazer a reserva técnica de remédios do kit intubação. O Estadão mostrou que o governo tentou comprar doses para seis meses, mas só conseguiu 17% do planejado. Os Estados reclamam que o Ministério da Saúde vem fazendo requisições administrativas para as fábricas destinarem o excedente de sua produção para o órgão desde o mês de março. A partir daí, a pasta faz a redistribuição das drogas para os estados, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). O processo ficou mais lento.
"É preciso que haja mais empenho do governo federal para adquirir e distribuir medicamentos sedativos para todo Brasil, sob risco de colapso da rede nacional, sobretudo, atingindo os municípios e filantrópicos, que são as unidades mais vulneráveis às oscilações de preço e que tem menor poder de negociação com os fornecedores", cobrou a secretaria estadual da Bahia.
Para fugir dessas dificuldades, os hospitais filantrópicos do Rio Grande do Sul decidiram se unir para fazer a importação direta. Assim que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a importação, 81 unidades da Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes, Religiosos e Filantrópicos se organizaram para fazer cotações internacionais.
O administrador Cassiano dos Santos Macedo, que atua na área de Saúde Suplementar da Federação, afirma que as melhores condições - preço e disponibilidade - foram oferecidas pela Índia. Depois do orçamento na mesa, 57 hospitais decidiram fazer o investimento. A primeira compra - 1 milhão de ampolas de Atracúrio, Fentanila e Midazolam - deve ser concluída na semana que vem. O estoque vai durar entre 30 ou 60 dias.
A iniciativa privada também está ajudando. Um grupo de empresas se uniu para comprar 3,4 milhões de unidades de remédios. Todos os medicamentos serão doados ao Ministério da Saúde em quantidade suficiente para a gestão de 500 leitos pelo período de um mês e meio. A ação conta com o apoio da Engie, Itaú Unibanco, Klabin, Petrobras, Raízen e TAG, além da Vale, que deu início a essa mobilização há três semanas.
A expectativa é de que até o final deste mês os sedativos, neurobloqueadores musculares e analgésicos opioides sejam doados ao governo federal, que cuidará também da distribuição pelos Estados por meio do SUS. Os itens, que foram adquiridos na China.
Outro lado
A Secretaria de Estado de Saúde de Minas afirma que o Ministério da Saúde mudou o procedimento para a requisição administrativa desses insumos e não consegue distribuir em tempo hábil para todos os Estados. A expectativa é que esta semana uma nova remessa de 3 mil ampolas de brometo de rocurônio será disponibilizada para 25 unidades de atendimento a pacientes com covid, direcionadas a hospitais da rede pública que estão com menos de dois dias de cobertura e que não receberam medicamentos na última remessa, em 10/4.
A Secretaria de Saúde do Paraná afirma que a entrega dos medicamentos tem ocorrido de forma fracionada pelos fornecedores. Assim, o envio dos medicamentos tem ocorrido de forma semanal aos hospitais do plano de contingência, o que não permite manutenção de estoques superiores a 30 dias. Ainda segundo o órgão, o Paraná tem várias aquisições já finalizadas aguardando entrega e aquisições em andamento, além do pedido constante de envio de medicamentos ao ministério.
A Secretaria da Saúde do Ceará afirma que, mesmo com os altos índices de internações, o "planejamento feito está garantindo o abastecimento dos medicamentos do "kit intubação" e que segue monitorando, orientando e colaborando continuamente com os municípios cearenses e hospitais privados quando solicitado".