"Caro médico e doce e amada enfermeira. Espero, do fundo do meu coração, que esteja tudo bem com vocês! Vocês não me conhecem ainda, mas eu precisei achar alguma forma de me comunicar."
O trecho acima inicia a carta enviada por Idaliani Mendonça, de 39 anos, a profissionais de saúde que cuidavam de sua mãe, a dona de casa Francisca Maria Dantas, 57, que foi internada em abril em uma unidade de saúde de Manaus (AM), com suspeita de covid-19.
Na época, a capital amazonense enfrentava uma explosão de casos de covid-19 — foi uma das primeiras cidades brasileiras duramente afetadas pelo coronavírus.
Longe da mãe, Idaliani, que mora com o marido e os dois filhos em Itajaí (SC), quis achar uma forma de fazer algo por Francisca. Por isso, escreveu a carta aos profissionais de saúde.
"A minha mãe sempre foi muito presente na vida dos filhos. Eu não poderia abandoná-la naquele momento", diz Idaliani à BBC News Brasil.
O apelo enviado pela filha aos profissionais de saúde que cuidavam de Francisca causou comoção. "O médico ficou muito emocionado quando leu", diz a caçula da família, Lindomara Dantas, de 33 anos, responsável por levar a carta da irmã.
O pedido aos profissionais de saúde
Francisca, também conhecida como dona Chiquinha, era definida pelos parentes como uma pessoa apaixonada pela família. Uma das grandes preocupações dela era estar perto dos quatro filhos — somente Idaliani, que é engenheira de qualidade e atualmente trabalha em uma indústria no Sul do país, não mora em Manaus.
Por volta da segunda semana de abril, Francisca apresentou os primeiros problemas de saúde, como dificuldades respiratórias e cansaço. Os parentes pensaram que pudesse se tratar de um mal-estar comum. Dias depois, a situação piorou e ela foi levada ao hospital. "Medicaram a minha mãe e depois a liberaram", diz Idaliani.
Os filhos passaram a desconfiar que Francisca pudesse ter sido infectada pelo coronavírus, pois Manaus passava por um período de forte propagação do vírus.
Francisca teve muita falta de ar em 19 de abril e foi levada a uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) da região. A dona de casa foi considerada uma paciente com suspeita de covid-19 e ficou internada.
No dia seguinte, foi encaminhada ao Hospital de Campanha do campus da Universidade Nilton Lins, em Manaus, criado para atender pacientes com o coronavírus.
As filhas contam que a dona de casa foi intubada logo que chegou ao hospital. A situação de Francisca era considerada grave e altamente suspeita para a covid-19. Ela não tinha doença pré-existente, mas a família acredita que o sobrepeso dela pode ter agravado a situação.
Em Itajaí, Idaliani acompanhava apreensiva o caso da mãe. Em Manaus, somente a irmã caçula dela podia ir ao hospital em busca de notícias de Francisca.
"Nossos outros dois irmãos não podiam sair, por serem do grupo de risco. A minha irmã mais velha tem asma (apontada por entidades médicas como fator que pode agravar o quadro da covid-19) e o meu irmão estava fraco, se recuperando de uma tuberculose", explica Idaliani.
As filhas da dona de casa contam que chegaram a passar dois dias sem notícias sobre ela no hospital. "Escrevi a carta também como forma de obtermos informações sobre a nossa mãe e para termos a certeza de que ela estaria recebendo um bom acompanhamento", conta Idaliani.
Na carta, entregue em 24 de abril, a filha se apresentou, citou o nome da mãe e agradeceu os esforços dos profissionais de saúde em meio à pandemia. "Espero que consigam um tempinho para ler esta carta, porque eu entendo como deve estar a rotina dentro do hospital", escreveu.
"Infelizmente, minha mãe é mais uma vítima desse vírus (...) Neste momento, ela está sob os cuidados de vocês há cerca de cinco dias. Intubada e bravamente lutando pela vida. Peço encarecidamente que olhem por ela, orem por ela", acrescentou Idaliani, no texto encaminhado aos profissionais de saúde.
A filha justificou, na carta, que escreveu aquele apelo por morar em outro Estado e estar impossibilitada de viajar, em razão das limitações de voos no país — nos primeiros meses da pandemia, as companhias aéreas reduziram drasticamente suas atividades.
"Eu sinto que Deus me diz que nossa mãe está em boas mãos, que são as suas e, principalmente, a Dele. Sei que vocês são cristãos. Sei também que têm família e que podem ser tão vítimas como muitos estão sendo em Manaus. Mas peço encarecidamente que olhem por nossa mãe. Nos dê notícias", escreveu Idaliani, que é católica.
"Imploro que digam ao ouvido dela que estamos orando fortemente por sua recuperação, mas que neste momento não podemos estar aí dentro cuidando dela, como muitas vezes ela cuidou de nós quando estivemos doentes, e que sentimos muito por isso", completou a filha. Ela ainda pediu, na carta, que os profissionais de saúde dissessem para a mãe lutar e resistir à doença, para sair logo do hospital.
No fim do texto, Idaliani salientou que acreditava que a mãe logo melhoraria e agradeceria aos enfermeiros e médicos. "Cuidem da nossa mãezinha, que é um ser de luz. Assim que tudo isso passar, vocês terão a honra de conhecer uma pessoa de Deus", concluiu.
Após a carta
Para entregar a carta escrita pela irmã, a filha caçula de Francisca teve a ajuda de uma conhecida, que é assistente social. Após o texto ser levado ao médico e à enfermeira, Lindomara ainda passou cerca de duas horas na unidade de saúde, à espera de respostas sobre a mãe.
"Fiquei na expectativa de receber algum boletim sobre ela. Em certo momento, o médico, muito simpático, me chamou. Ele disse que minha mãe estava reagindo bem à intubação. Ele havia lido a nossa carta e ficou muito emocionado, porque a gente entregou a vida da nossa mãe nas mãos deles", diz Lindomara.
Nos dias seguintes, contam as irmãs, elas passaram a receber informações atualizadas sobre o estado de saúde da mãe. "A cada dia, ela parecia estar melhor. Tínhamos muita esperança de que ela conseguiria se recuperar", relata Idaliani.
Em 28 de abril, Francisca teve uma parada cardíaca, chegou a ser reanimada, mas morreu em seguida. Lindomara soube da notícia no período da tarde, quando foi ao hospital em busca de informações sobre a mãe. "Foi um momento muito triste. A minha irmã caçula estava no hospital, desesperada. Ela logo me ligou e me contou. Quando eu soube, gritei de desespero", emociona-se Idaliani.
Por ter morrido com suspeita de coronavírus, Francisca não teve velório e foi enterrada em caixão lacrado, conforme determina a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para evitar a propagação do vírus.
Os familiares de Francisca afirmam que não têm dúvidas de que ela morreu em decorrência da covid-19.
"Desde que ela foi internada, os médicos falaram que ela tinha os sintomas da covid, tanto que ela foi encaminhada ao hospital de campanha. Em todas as informações que recebemos dos médicos, constava que ela estava com essa doença", relata Idaliani.
"Deram até hidroxicloroquina para ela, por acreditarem que ela estava com a covid", acrescenta.
Os parentes afirmam não saber como a dona de casa pode ter sido infectada. "Ela era muito cautelosa e não saía na rua. Morria de medo de pegar o vírus e falava para as pessoas não saírem sem máscaras. Como Manaus vivia o auge de casos na época, é difícil saber como ela pode ter pegado", diz Idaliani.
Francisca morava com a filha caçula, que relata ter tido sintomas semelhantes aos de um quadro leve de covid-19.
A vida sem a mãe
Mais de cinco meses depois da perda da mãe, Idaliani avalia que a carta foi muito importante para ela e para os irmãos. "Acredito que naquele texto consegui demonstrar a minha presença como filha, mesmo que distante. Não achava justo que a minha mãe, que a vida toda cuidou de mim e dos meus irmãos, se sentisse sozinha naquele momento, sem notícias nossas", declara.
Dias após o Brasil passar de 150 mil mortos pela covid-19, Idaliani lamenta como muitos têm lidado com o vírus. Ela se mostra preocupada com a situação no Amazonas, que registrou, até a terça-feira (13/10), mais de 147,8 mil casos da doença e 4,2 mil mortes, conforme o Ministério da Saúde.
Os registros de covid-19 voltaram a subir recentemente em Manaus, que havia tido uma queda drástica de casos após ser duramente afetada pelo coronavírus entre abril e junho — mas autoridades dizem que não é possível falar, ao menos por enquanto, em uma segunda onda.
"A situação (da pandemia) não está resolvida. As pessoas precisam se cuidar, por elas e pelos outros", afirma Idaliani. Há duas semanas, ela perdeu um amigo que morava em Manaus, em decorrência de complicações causadas pela covid-19. "Era um vírus que ninguém esperava", comenta Idaliani.
Sem notificação
Apesar da suspeita da família e até dos médicos, a morte de Francisca não foi notificada como um caso de coronavírus. Na certidão de óbito consta que ela faleceu em razão de uma pneumonia não especificada.
Em nota à BBC News Brasil, a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS) afirma que a dona de casa "fez coleta e realizou o exame de PCR (teste molecular) dentro do prazo da janela de detecção do vírus, com resultado negativo para covid-19".
A Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas diz, em nota, que "em caso de dúvidas quanto ao diagnóstico recebido, a família pode solicitar informações junto à Ouvidoria da Secretaria de Saúde".
No início de outubro, 345 mortes em Manaus, entre abril e maio, foram reclassificadas para covid-19. Isso ocorreu após novas definições do Ministério da Saúde, que passou a considerar situações como tomografia de pulmões, que apontem problemas semelhantes aos causados pelo coronavírus, ou contato próximo com um infectado pelo vírus, que tenha sido diagnosticado em exame laboratorial, como novos critérios para atestar que uma pessoa com sintomas está com a doença.
Nos primeiros meses da pandemia, como no período em que Francisca morreu, somente os exames laboratoriais eram considerados critérios para comprovar a covid-19.
Desta forma, segundo especialistas, muitas pessoas infectadas pelo vírus podem ter dado falsos negativos e logo foram descartadas como possíveis casos de coronavírus.
A família de Francisca acredita que o exame feito por ela enquanto estava internada pode ter dado um falso negativo. Agora, os parentes planejam solicitar uma nova avaliação do caso dela, por meio dos exames e tomografias feitos enquanto ela estava no hospital, para descobrir se a dona de casa realmente foi vítima da covid-19. "Nada vai trazer a nossa mãe de volta, mas queremos ter essa resposta", declara Idaliani.
"A nossa mãe tinha vários planos e tinha uma boa saúde até apresentar os primeiros sintomas. Em 2020, ela iria recomeçar a vida, após a morte do meu padrasto, no fim do ano passado. Quando ela começou a se estabilizar emocionalmente, não deu certo. O destino pregou uma peça na gente e a levou", acrescenta.