A pandemia nos mostra qual poderá ser o futuro da arquitetura

Terá chegado o momento para respostas rápidas, pontuais, pragmáticas a um ambiente construído que não se sentia mais seguro, ou seria este um momento revolucionário, uma chamada para uma reformulação total?

16 jul 2020 - 10h11

Na primavera de 2002, um curioso edifício foi tomando forma em frente à praia do Lago de Neuchâtel, na Suíça. Parecia uma nua plataforma industrial cercada por uma confusão de tubos e andaimes. Mas a estrutura tinha uma chave para "ligar" e, quando era acionada, este deck ao ar livre se transformava. A água do lago bombeava a alta pressão por meio de 35 mil esguichos, transformava-se em uma fina névoa na forma de uma nuvem que cobria toda a plataforma. Os visitantes da Exposição Suíça, para a qual o edifício foi projetado, entravam na nuvem, andavam pelo seu interior, subiam nela e experimentavam o curioso efeito de se encontrarem em um mundo agora tornado um borrão, dissolvido em um nevoeiro artificial.

O Blur Building, criado por Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio, foi um dos eventos arquitetônicos icônicos do novo milênio.
O Blur Building, criado por Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio, foi um dos eventos arquitetônicos icônicos do novo milênio.
Foto: Diller Scofidio + Renfro/ Divulgação / Estadão

O Blur Building, criado por Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio, foi um dos eventos arquitetônicos icônicos do novo milênio. A estrutura temporária teve o único propósito de surpreender agradavelmente e talvez provocar os seus visitantes, oferecendo-lhes uma experiência distinta e distante dos problemas e preocupações diários. Mas a experiência também criou sonhos tangíveis que inspiraram os arquitetos durante um século pelo menos - a criar espaços em que o interior e o exterior fluam um no outro, a desmaterializar edifícios de pedra e aço em algo mais fluido, dinâmico e permeável.

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"O público pode beber o edifício", escrevera os seus autores. O projeto criava também espaços sem limites, em que as pessoas eram convidadas a se movimentar sem padrões fixos de circulação, sem corredores ou paredes para guiá-los ou contê-los. Aparentemente, tratava-se de uma arquitetura de liberdade total.

Imaginem se aquele edifício fosse proposto hoje, no meio de uma pandemia, quando a primeira coisa que associamos à palavra "gotículas" não é neblina, névoa ou nuvens, mas o produto de uma tosse ou de um espirro, carregado de um vírus perigoso, um vetor da morte. Agora que todo mundo no planeta deve pesar cuidadosamente os benefícios e os danos ao atravessar a soleira da porta, entre o espaço privado e público, entre interior e exterior, poderemos salvar algo da antiga fantasia de apagar essas fronteiras? Quando a maior esperança de frear e conter o coronavírus está na cuidadosa regulamentação do movimento e a rigorosa obediência ao distanciamento social, o que acontece com o nosso desejo de edifícios que celebrem a vontade de vagar, da exploração promíscua e de uma interação social espontânea?

Projeto do Blur Building é arquitetura de liberdade total, uma proposta impensável atualmente.
Foto: Diller Scofidio + Renfro/ Divulgação / Estadão

Quando a covid-19 se espalhou da China para o mundo, e se tornou uma pandemia com consequências devastadoras para os sistemas de saúde nacionais e para a economia mundial, os arquitetos se viram na mesma situação de qualquer outra pessoa: fechados em casa, inquietos a respeito do futuro e lutando para se manterem relevantes e necessários enquanto os clientes desapareciam ou adiavam grandes projetos. O fechamento afetou duramente a indústria, e o Índice Billings da Arquitetura, que é usado para projetar perspectivas de edificações não residenciais, registrando o seu maior declínio em um mês desde que o Instituto Americano dos Arquitetos criou o indicador econômico, há 25 anos. Em abril, mais de 8 em 10 escritórios de arquitetura avaliados pelo IAA pediram empréstimos para o Programa de Proteção aos Salários.

De repente, a profissão se encontrava em uma encruzilhada. Terá chegado o momento para respostas rápidas, pontuais, pragmáticas a um ambiente construído que não se sentia mais seguro, ou seria este um momento revolucionário, uma chamada para uma reformulação total? Em março, as notícias do mundo da arquitetura só falavam em aulas adiadas, escritórios fechados e conferências canceladas. No dia 26 de março, Michael Sorkin, uma das vozes mais fortes do país sobre planejamento urbano e arquitetura, morreu de complicações em decorrência da covid-19. Ele era um respeitado educador e uma inspiração para alguns dos arquitetos mais progressistas e voltados para o social que atuam hoje. Sua perda foi um golpe para este campo. Em abril, a comunidade dos arquitetos e designers foi inundada por conferências e conversações online e ciber-conferências, sobre uma variedade de assuntos tão vastos quanto a profissão em si. Como transformar centros de convenções em hospitais e como tornar seguros hospitais superlotados. Mas também como "tornar a nossa casa um santuário" e como imprimir em 3-D proteções faciais em casa.

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Alguns pensadores estabeleceram grandes conexões (um arquiteto apresentou "um novo modelo de projeto pode impedir a destruição do ambiente que contribui para a pandemia"). Outros ligaram a pandemia a questões favoritas, familiares. "O coronavírus criou uma oportunidade para melhorar a experiência banal nas nossas cidades..."

Era a arquitetura sendo arquitetura. O alcance do campo é tão específico quanto maçanetas de portas e interruptores de luz, e de um alcance tão amplo quanto a infraestrutura dos transportes globais e as redes de comunicações. A profissão é intensamente prática, muitas vezes altamente especializada e ainda tremendamente teórica, e a repentina explosão aparentemente caótica das respostas à pandemia reflete simplesmente a maneira como ela pensa de forma coletiva. Mas havia uma urgência, determinada pelo número crescente de mortes em razão do vírus.

Os designers iluminados sabem que as nossas cidades precisam ser densas e conectadas para evitarmos os problemas ambientais dos bairros ao redor do centro de meados do século, e uma cultura baseada no automóvel. Edifícios altos, com elevadores, contribuem para aumentar o adensamento. A vida urbana deve também estar repleta de interação e energia social para que possamos viver felizes em mútua proximidade. A estabilidade social através das gerações exige uma vida em comunidades fluidas, multigeracionais, integrando e não isolando ou alienando os jovens, os que trabalham e os idosos. Mas a covid-19 ameaçou tudo isto, não apenas as ideias nascidas em mentes inspiradas a respeito de cidades democraticamente engajadas, socialmente diferenciadas e densas, mas também a maneira como habitamos os edifícios e nos movimentamos através do espaço. Nas grandes cidades ao redor do mundo, as pessoas olharam-se entre si preocupadas, por acima das máscaras, preferindo a beirada das calçadas, abraçando a entrada dos edifícios, deixando o elevador passar para não encontrar outros passageiros em um espaço confinado. Nos rinques de patinação transformados em necrotérios improvisados surgiram imagens. Pela televisão, os americanos viam membros da mesma família reunidos fora das janelas dos asilos de idosos, onde seus pais e avós estavam morrendo em números recordes, sem proteção nas intempéries entre altos arbustos ornamentais, pondo as mãos nas janelas acima deles. Em busca de comunicação com as pessoas do outro lado das paredes de drywall cobertas de placas de alumínio. Esta não foi apenas uma tragédia social: foi a marca do fracasso arquitetônico e um exemplo em tempo real de como as pessoas irão propor os edifícios se estes não as servirem adequadamente.

Ao mesmo tempo, centenas de milhões de pessoas, inclusive muitos arquitetos, encaravam as inadequações de seus próprios espaços domésticos: apartamentos pequenos, amontoados ao redor de espaços para eventos, e espaços para ginástica cujo uso não era seguro, com a lavanderia disponível somente no subsolo. As casas dos bairros periféricos com seus conceitos abertos, com interiores amplos, careciam de divisões suficientes para manter as pessoas com o vírus separadas das que não tinham. À medida que semanas de isolamento foram se tornando meses, e o medo de um aumento dos contágios crescia com a proximidade do verão, estas inadequações foram criando um novo consenso, não articulado plenamente, mas percebido por todos: a arquitetura diz respeito a direitos, ao ar, a acesso igual às necessidades da vida.

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Enquanto a pandemia não cessa, e os arquitetos se sentem encorajados pela crescente percepção de que este é um momento de transformação que poderá derrubar antigas hierarquias, e até mesmo o capitalismo que conhecemos, eles estão pensando no legado do modernismo e sua promessa de reformulação do mundo. Será possível que a arquitetura venha a ser amplamente política, como foi outrora, mas mais eficiente? Ela poderá empreender projetos maiores do que cidades onde se possa andar a pé e arranha-céus eficientes em matéria de energia? Ela visará algo maior do que a criação de edifícios em que vivemos, trabalhamos e morremos, algo mais semelhante a um ambiente que nos cerca, que nos proteja e inspire? Acaso a arquitetura, assim como o mundo que o vírus ameaçava, poderá tornar-se orgânica?

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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