RIO - Ex-presidente da Fiocruz, o médico é o único brasileiro a integrar um grupo de elite criado pela Organização Mundial de Saúde ( OMS). O colegiado tem como objetivo investigar as origens do Sars-CoV-2, vírus causador da covid-19, e criar diretrizes para identificar e prevenir o surgimento de patógenos capazes de deflagrar novas pandemias.
Os nomes dos 26 especialistas que integram o painel foram escolhidos após indicação de mais de 700 cientistas de todo o mundo e confirmados em 28 de outubro pela OMS. "O surgimento de novos vírus com o potencial de desencadear epidemias e pandemias é um fato da natureza", diz Morel, ex-coordenador do Programa Especial para Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais da OMS. "Apesar de o Sars-CoV 2 ser o mais novo deles, não será o último." Segundo ele, entender de onde vêm os novos patógenos é essencial para prevenir futuros surtos com potencial epidêmico e pandêmico. Esse processo requer uma vasta gama de expertises, afirma ele, membro da Academia Brasileira de Ciências.
O epidemiologista John Watson, do University College de Londres, o geneticista Yungui Yang, do Instituto de Genômica de Pequim, e o especialista em doenças infecciosas Inger Damon, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, são alguns dos colegas de Morel no grupo. O médico brasileiro participou do Projeto Viroma Global que buscava identificar patógenos que pudessem representar risco de novas epidemias. O projeto não foi adiante.
Em artigo na revista Science, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, e outros membros da OMS explicam que o grupo foi criado também para conter a pressão política que se criou nas investigações sobre as origens da covid e tentar manter os trabalhos no campo técnico. Em entrevista ao Estadão, Morel fala dos desafios políticos e científicos do novo grupo e diz que o surgimento de novos patógenos é inevitável. "Os vírus são talhados e preparados para se espalhar. É Darwin na veia", declara, referindo-se ao britânico Charles Darwin (1809-1882), autor da Teoria da Evolução e que trabalhava com o conceito de seleção natural, com a sobrevivência dos mais aptos.
Leia a entrevista:
A OMS já havia criado um grupo de especialistas para determinar a origem do novo coronavírus responsável pela pandemia. Por que outro grupo?
O grande desafio geográfico, científico e político é saber de onde veio o vírus e como ele surgiu. Foi a mão humana? A Mãe Natureza? Foi disseminado propositalmente? Houve um vazamento (de um laboratório)? Na época em que o outro grupo foi criado, Donald Trump ainda estava à frente da presidência dos Estados Unidos e logo começou a falar em "vírus chinês" e a acusar a China de ter criado o vírus, causando grande tumulto. A OMS tentou ajudar, formando um grupo de dez pessoas que chegou a ir até a China, mas as conclusões a que chegaram não foram aceitas. Em determinado momento, em meio ao tiroteio político, a China vetou a entrada dos especialistas no país, criando um impasse. A OMS começou a ser criticada por não ter autoridade suficiente. E não tem mesmo. Os especialistas só entram num país se forem convidados; nos Estados Unidos é a mesma coisa. O fato é que esse impasse perdurou durante um ano. O desafio agora é atrair a colaboração da própria China. A forma como o novo grupo foi criado propicia isso porque foi aberta uma chamada pública e ele reúne especialistas do mundo inteiro, inclusive da China. Além disso, temos que não apenas descobrir o que houve, mas também olhar para a frente, para as próximas epidemias.
A hipótese de vazamento, intencional ou acidental, continua sobre a mesa?
Não vamos excluir nenhuma hipótese, mas não temos uma agenda predeterminada. No entanto, só vamos avançar com a colaboração da China. Ninguém tem o poder de entrar e vasculhar gavetas, não é por aí. A gente vai precisar trabalhar com os cientistas e com o governo chinês. Eles têm de confiar no grupo.
Acha que agora a China estará mais aberta a essa colaboração?
Quando a epidemia começou, muita gente falou que Wuhan (primeiro epicentro da pandemia, no início do ano passado) era a Chernobyl da China, que o país seria arrebentado (referência à região soviética onde houve um acidente em uma usina nuclear em 1986). Mas a China deu a volta por cima e quem está na linha de tiro são os outros países que não conseguiram dominar a epidemia. A China venceu a epidemia. Isso pode levar o país a ser mais cooperativo dessa vez. A atmosfera agora é um pouco diferente.
E do ponto de vista científico, o que pode ser feito?
O problema científico tampouco é fácil de resolver. Precisamos achar o hospedeiro intermediário do vírus, que pode ser o morcego, o pangolim, o vison. Para isso, temos de encontrar na natureza sequências genéticas muito próximas daquela do coronavírus. Saber quem é o paciente zero e como ele foi infectado também é fundamental. É um trabalho de detetive. Uma das esperanças é que tenham coletado muitos soros entre dezembro e janeiro. Se existirem esses soros, temos um bom material de trabalho.
O senhor participou do Projeto Viroma Global, lançado em 2018, que tinha por objetivo justamente identificar e sequenciar os vírus com potencial de causar uma pandemia. Se tivesse avançado, isso poderia ter evitado ou pelo menos previsto a pandemia?
Difícil dizer, mas talvez a montagem do "Atlas" dos vírus circulantes estivesse mais avançada.
Mas os morcegos estavam na mira de vocês, não é?
Se estavam! A virologista Shi Zhengli, de Wuhan, participou de seminário na Fiocruz em meados de 2019, deu uma palestra ótima, com vários slides chamando a atenção para animais silvestres como hospedeiros e/ou reservatórios de vários vírus... Era como se estivesse apontando: "olha o perigo aí, gente!" Na Tailândia, fezes de morcego são vendidas como adubo. Os morcegos ficam em uma choupana, em que o chão é forrado com lençóis, para que as fezes sejam recolhidas. E as pessoas faziam isso sem máscara, sem nenhum equipamento de proteção. A possibilidade de contágio é muito grande, porque o morcego é muito imune a esses vírus e transmite bastante.
A descrição do projeto chegou a ser publicada na Science, em 2018. Por que não foi à frente?
Logo que publicamos o trabalho na Science, o Eduard Holmes, um dos maiores virologistas do mundo e especialista em doenças emergentes, fez uma publicação dizendo que não apoiava o projeto. Isso nos enfraqueceu. Ele achava que ninguém conseguiria prever uma nova pandemia e que seria melhor agir quando algo acontecesse. Aí perdemos a corrida. Ele ponderava também que seria muito caro. Muito mais caro está sendo enfrentar a covid. Isso coincidiu também com a chegada de Donald Trump à presidência dos EUA. O projeto era financiado em grande parte pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA, que teve grande parte da verba cortada. Ele matou o Viroma. Depois da pandemia, o leite já foi derramado.
O novo grupo da OMS pretende retomar essa ideia do Projeto Viroma?
Eu, pessoalmente, defendo essa ideia, mas vai depender de quem vai financiar e dos apoios que o projeto vai receber.
O que mais o novo grupo pode fazer? Estabelecer diretrizes mundiais para o caso do surgimento de novos patógenos, por exemplo?
A OMS não tem poder de polícia, tudo se constrói com confiança, mas podemos criar diretrizes para os países. Por exemplo: podemos criar uma norma de comunicação imediata à OMS para a identificação de um novo patógeno. A China levou uma semana para comunicar. Um dos grandes desafios é termos laboratórios de segurança para trabalhar. O Brasil, por exemplo, tem pouquíssimos laboratórios de nível segurança 3 (necessários para a manipulação do Sars-CoV-2) e nenhum de segurança 4. Por que não criar um desses na Amazônia, onde a probabilidade de um novo vírus surgir é maior?
Teremos uma nova pandemia?
Os vírus são talhados e preparados para se espalhar. É Darwin na veia.