O surto de influenza combinado com a disseminação da variante Ômicron do novo coronavírus no País teve como efeito a corrida de milhares de brasileiros aos postos de testagem para identificar se houve contaminação pela covid-19 durante as festas de final de ano. Para muitos pacientes com suspeita de contaminação pela doença, o teste se tornou sinônimo de resiliência nas longas filas do serviço público, ou de custo adicional para aqueles que recorrem aos grandes laboratórios privados. Além disso, surge no horizonte a possibilidade de falta de testes na rede particular.
Em viagem de ano novo com os amigos às praias de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, a publicitária Fernanda Cui se contaminou com a covid-19, assim como os outros onze colegas do grupo formado por dezoito pessoas. O congestionamento gerado na região nesta época do ano pelo fluxo intenso de turistas na via principal frustrou a tentativa dos viajantes de se testar numa Unidade Básica de Saúde (UBS) localizada no centro da cidade litorânea. Com sintomas desde antes da virada, os testes só foram realizados ao retornarem para São Paulo, no dia 3 janeiro deste ano.
Já de volta à capital paulista, Cui recorreu a um posto de testagem rápida da rede DelBoni Auriemo, onde o teste antígeno foi realizado por R$ 150. Apesar de ter testado positivo, ela desejava uma contraprova via RT-PCR. A publicitária procurou o Hospital Santa Paula, na zona sul de São Paulo, mas ao passar pela triagem foi informada que a fila de espera no último dia 4 superava 8 horas. Ela decidiu desistir de confrontar os resultados e iniciou o isolamento.
"A gente tem um cenário muito complicado, ao mesmo tempo que as pessoas apresentam sintomas leves, temos muitos casos positivos, só que tem sido necessário gastar muito dinheiro para testar", disse. "A gente não tem acesso fácil aos testes que garantem o direito da pessoa saber se está com covid. Se a gente tivesse o autoteste na praia, poderíamos ter iniciado antes o isolamento", completou.
Os demais colegas envolvidos na viagem relataram ter enfrentado mais de duas horas de espera para se testar no Sistema Único de Saúde (SUS), com até três dias de espera para receber o resultado. Levantamento feito pelo Estadão com as secretarias de saúde dos Estados mostra que o tempo médio para obter o resultado do teste tipo RT-PCR, considerado padrão ouro, é de dois dias e meio.
Em alguns estados, como Maranhão e Amapá, a espera para saber se houve contaminação pelo vírus dura até cinco dias. No Pará, onde é necessário aguardar por dois dias o diagnóstico, ainda é exigida a combinação de testes, o que em alguns casos obriga o retorno do paciente ao posto de saúde no dia seguinte ao exame inicial. Além disso, nove das vinte e uma Secretarias que responderam à consulta da reportagem informaram exigir prescrição médica para a realização de testagem - fator que aumenta o tempo de espera nas unidades de atendimento e é alvo de críticas de epidemiologistas.
Na zona leste de São Paulo, Roberta da Silva testou positivo para a covid-19 na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Itaquera, logo após o Réveillon. Embora fosse o primeiro dia do ano, e a demanda estivesse baixa, foi necessário esperar por uma hora e meia até a realização do teste. Nesta terça-feira, 11, ela voltou ao posto de testagem para conferir se a doença persistia, mas se deparou com uma longa fila de espera posicionada na área externa da UPA. Em um dia de chuva na capital paulista, as dezenas de pessoas que aguardavam para serem atendidas se aglomeraram no único ponto coberto da unidade. Ela também desistiu de realizar um novo teste.
"Na minha cabeça não fazia sentido eu estar lá ao lado de pessoas com sintomas muito severos, como tosse e espirro. Pela minha segurança, eu preferi não esperar", disse.
Para o ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto, a corrida aos postos de testagem não deve ser estimulada. Ele sugere a adoção do protocolo de isolamento social já no início dos primeiros sintomas gripais, independentemente da existência de diagnóstico para influenza ou covid-19, também como forma de evitar a aglomeração nas unidades de saúde e o eventual contágio nesses locais.
Falta de teste no setor privado pode levar ao "caos" na saúde
O cenário não melhora no setor privado, que, além de enfrentar a possibilidade de escassez, oferece testes RT-PCR a preços considerados altos pelos usuários. Na rede de medicina diagnóstica Fleury, do Distrito Federal, o exame é realizado por R$ 380, com prazo de dois dias para entrega dos resultados. Na concorrente Sabin, é cobrado R$ 295, com o mesmo tempo de espera. Já a Biolab, oferece o preço mais baixo, R$ 250, mas com resultado em até cinco dias por conta do aumento dos casos. Os valores variam nos vinte e sete estados da federação.
Nesta quarta-feira, 12, a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) emitiu nota técnica com alerta para a possibilidade de falta de testes de covid-19 devido à escassez de insumos necessários para a realização dos exames, como os cotonetes utilizados no RT-PCR. No documento, é recomendado a priorização de pacientes em estado grave para evitar o esgotamento dos estoques no País. A sugestão contraria a posição defendida por especialistas ouvidos pelo Estadão, que apontam a ampla testagem como uma das principais políticas públicas de enfrentamento à pandemia.
Ao tentar agendar um teste para covid-19 nos sites das redes de farmácia Drogasil e Drogaria, já é possível se deparar com a informação de que os exames foram suspensos temporariamente por causa do desabastecimento. As empresas relatam nos comunicados que o agendamento deve ser retomado nos próximos dias mediante restabelecimento dos estoques.
Dados reunidos pela Abramed em outro estudo expõem os motivos que levaram à escassez: houve aumento de 98% dos testes de covid-19 entre a semana do Natal e o início de janeiro, em laboratórios privados do País. Somente entre os dias 3 e 8 deste mês foram realizados mais de 240 mil exames na rede particular, apesar dos preços elevados cobrados em algumas regiões. O aumento no número de exames coincide com o salto de 7,6% para 40% na média de testes positivos.
A epidemiologista Ethel Maciel, da Universidade Federal do Espírito Santo, afirma que a falta de testes na rede privada levará ao "caos" no sistema de saúde do País, uma vez que 28,5% da população brasileira recorre ao entendimento particular por meio de planos de saúde, como consta na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A pesquisadora avalia que a defasagem na testagem em laboratórios e centros de medicina diagnóstica pressionará ainda mais o Sistema Único de Saúde (SUS).
"O Brasil nunca teve um programa de testagem com informações claras e testes disponíveis em locais acessíveis, como repartições públicas e locais de grande circulação, com terminais de ônibus e metrôs", afirma. "Com a chegada da Ômicron, a situação fica ainda mais grave por termos uma procura muito grande e a oferta limitada, mesmo na rede privada. O que poderia melhorar o panorama é a oferta de autoteste. Deveríamos ter uma política pública que pudesse ofertar no SUS a testagem", avalia.