Doença não é mais tomada como ameaça, mas OMS vê subnotificação no número de mortos. Covid longa e tratado internacional sobre preparação contra futuras pandemias ainda são desafios.No dia 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi notificada sobre casos de uma "pneumonia de origem desconhecida" na cidade chinesa de Wuhan. Era o primeiro alarme da existência da covid-19, doença que levou o mundo à pior pandemia enfrentada em um século.
Cinco anos depois dos primeiros casos da doença, a covid-19 já não é vista como uma ameaça, mas continua a deixar vítimas e a manter em alerta instituições como a OMS.
Em 2024, por exemplo, a agência da ONU registrou três milhões de casos em todo o mundo e 70 mil mortes. O número é 50 vezes menor do que os 3,52 milhões de mortes contabilizadas em 2021, o ano mais letal da pandemia.
Na conta da OMS, 777 milhões de casos e sete milhões de mortes por covid-19 se acumularam nos últimos cinco anos, embora a própria agência reconheça que o número real de mortes seja até três vezes superior ao estimado e ultrapasse os 20 milhões.
O vírus SARS-CoV-2 se transformou com o tempo, com a vacinação da população e a evolução da cepa para variantes mais contagiosas, mas menos letais. Aos poucos, o agente patogênico da covid-19 se tornou comparável ao de uma gripe: uma doença que na maioria dos casos causa sintomas ligeiros ou moderados, embora ainda possa ser perigosa para os idosos e outros grupos vulneráveis.
"Já não se ouve falar de covid, mas o vírus continua a circular amplamente em todo o mundo. Não há muita visibilidade porque já não há tantos testes, a vigilância foi reduzida", disse a especialista da OMS Maria Van Kerkhove, epidemiologista que lidera a resposta da agência à doença desde 2020.
Por meio de testes feitos nas águas residenciais de diferentes países, a OMS acredita que a circulação real do vírus pode ser até 20 vezes superior à estimada oficialmente. A preocupação agora é com a chamada covid longa, que afeta com sequelas duradouras 6% das pessoas que se recuperam de casos graves da doença.
"Afeta múltiplos órgãos, do coração aos pulmões e ao cérebro, ou pode mesmo ter consequências para a saúde mental", afirmou Kerkhove em uma transmissão da OMS que analisou os cinco anos da doença. A ONU também trabalha para aprovar um novo tratado internacional sobre preparação contra futuras pandemias, mas tem enfrentado forte resistência do setor farmacêutico.
Cronologia de uma pandemia
O primeiro alerta emitido pela OMS soou no dia 5 de janeiro de 2020, quando a agência disse ter identificado, cinco dias antes, uma "pneumonia de origem desconhecida".
O coronavírus logo se mostrou transmissível entre humanos, uma das principais etapas evolutivas para que se tornasse uma epidemia, obrigando a OMS a declarar emergência internacional em 30 de janeiro de 2020 e a considerá-lo uma pandemia em 11 de março.
Um dia depois, o vírus fazia a primeira vítima no Brasil — uma mulher de 57 anos —, mas seu óbito em São Paulo demorou meses para ser identificado como decorrente da covid-19. Até junho de 2020, se acreditava que a primeira morte pela doença tinha acontecido em 18 de março.
Essas foram as primeiras vítimas de um vírus que, até 2023, matou 700 mil pessoas no Brasil. O número coloca o país no segundo lugar do ranking de mortes por covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos.
O avanço da doença em todo o mundo levou a políticas de confinamento e limitação de transporte, e um caos generalizado na saúde pública, que tentava se adaptar a uma realidade com a qual o planeta não estava preparado.
O período ficou marcado por uma intensa discussão sobre o tipo de tratamento adequado e estratégias para impedir a disseminação do vírus, que transformou a emergência da saúde em uma disputa política atravessada pela desinformação.
No Brasil, o então presidente Jair Bolsonaro defendeu e estimulou o uso de medicamentos não indicados para o tratamento de covid, como a cloroquina e a ivermectina, e promoveu ataques e desinformação contra as vacinas.
Ao mesmo tempo, os cientistas se empenharam em uma corrida contra o vírus, desenvolvendo em tempo recorde as primeiras vacinas com base em novas tecnologias de RNA mensageiro.
Cinco anos depois, o lockdown ficou no passado, juntamente com as campanhas de vacinação em massa, agora limitadas a idosos, profissionais de saúde e outros grupos de risco, embora a doença ainda esteja presente.
"Ainda temos cerca de 4 mil mortes por mês, mas muitos países não informam mais os dados à OMS. Apesar de não estarmos na mesma situação de 2020, 2021 ou 2022, o vírus veio para ficar", disse Kerkhove.
Covid longa e obstáculos políticos
A OMS continua a recomendar que as pessoas com mais de 65 anos e outros grupos vulneráveis sejam vacinadas regularmente para evitar formas graves da doença que levem à hospitalização. A atual vacina se baseia principalmente na subvariante JN.1, a mais difundida e decorrente da ômicron.
Agora, porém, a maior preocupação da organização é com a covid persistente, ou covid longa, uma condição ainda não completamente sistematizada nos anais médicos devido aos múltiplos sintomas que produz, como a fadiga persistente.
"Sabemos que o risco de desenvolvê-la aumenta se a pessoa for reinfectada, e que a vacinação com pelo menos duas doses a reduz até a metade [essa possibilidade]", afirmou Kerkhove.
As sequelas da pandemia também avançam sobre as negociações políticas. A agência tem movimentado uma campanha para destravar um tratado sobre preparação contra futuras pandemias, que está em negociação há quase três anos e foi desenhado com base no despreparo global para lidar com patógenos como a covid-19.
O objetivo é preparar todos os países para futuros agentes com potencial pandêmico, sejam novos coronavírus ou qualquer outro agente ainda desconhecido, apelidado de "doença X".
A organização, porém, não conseguiu que o tratado fosse assinado na assembleia que promoveu em julho de 2024. Os países não concordaram em questões comerciais de distribuição de vacinas, tratamentos e testes de diagnóstico em caso de pandemia. Aspectos do acordo, como a flexibilização das patentes de medicamentos em caso de pandemias, ainda geram resistência.
"As pessoas querem atirar a covid para o passado, fingir que nunca aconteceu porque foi traumático, mas isso impede que nos preparemos para o futuro", alertou Kerkhove.
gq/bl (lusa, efe, ots)