Quando o presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso, Eduardo Botelho (DEM), soube que seu quadro de saúde se agravou, após ser diagnosticado com a covid-19, fretou um avião para se internar no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, uma das unidades de saúde mais conhecidas no país.
No início da semana, Botelho deixou Mato Grosso por medo de precisar de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). No Estado, que tem enfrentado explosão de casos e mortes pelo novo coronavírus, quase não há leitos de UTI disponíveis na rede pública ou privada.
Assim como Botelho, o presidente do Tribunal de Contas de Mato Grosso (TCE-MT), Guilherme Maluf, que é ex-deputado estadual, também alugou um avião para se tratar em um hospital particular de São Paulo, após ser diagnosticado com a covid-19.
Milionários, Botelho e Maluf não pensaram duas vezes antes de viajar para São Paulo. Os dois constataram que teriam melhor atendimento longe do próprio Estado no qual são figuras conhecidas da política — Maluf é ex-presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso e se tornou conselheiro do TCE-MT em razão de seu cargo como deputado estadual.
Além da carreira política, Botelho e Maluf têm outra característica em comum: são alvos de diferentes investigações sobre fraudes contra os cofres públicos de Mato Grosso. Os dois negam qualquer irregularidade.
Maluf e Botelho ilustram uma realidade social da covid-19: os ricos são os menos afetados duramente pelo novo coronavírus.
Em Mato Grosso havia, na semana passada, 37 pedidos de leitos de UTI para pacientes com a covid-19. Apesar das solicitações, porém, pouco podia ser feito sobre o assunto. Isso porque há poucos leitos disponíveis — muitas vezes, quando um é desocupado, logo há um paciente grave à espera. Nos Estados vizinhos, a situação não é muito diferente, o que dificulta a intenção do governo de transferir doentes para outras regiões.
Em Mato Grosso já foram registradas mais de 1,2 mil mortes pelo novo coronavírus e 31,1 mil pessoas foram infectadas, segundo dados atuais do Ministério da Saúde. O Estado, que figurava entre aqueles com menos casos no país, agora está entre as regiões com os maiores índices de crescimento de registros de covid-19.
Milionários em SP
Guilherme Maluf, de 56 anos, foi diagnosticado com a covid-19 no último fim de semana, após apresentar sintomas como tosse e febre. Diante da falta de UTI no Estado, alugou um avião e seguiu, junto com a esposa, para o hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo.
De acordo com a assessoria de imprensa de Maluf, mesmo sem sintomas graves, ele viajou para São Paulo como forma de precaução, caso os sintomas piorassem e precisasse de uma UTI. O quadro de saúde de Maluf é considerado estável.
Ainda segundo a assessoria de imprensa, o avião foi fretado por Maluf com recursos próprios. Os custos da internação dele no hospital, também conforme a assessoria, são cobertos pelo plano de saúde que possui.
Assim como Maluf, o deputado estadual Eduardo Botelho, de 61 anos, também decidiu viajar para São Paulo por medo de precisar de uma UTI. "O avanço (da doença) foi muito rápido", disse o presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso em um vídeo publicado em suas redes sociais.
"Fui informado que se eu continuasse evoluindo assim, poderia precisar de UTI. Com o sistema totalmente colapsado de UTI (em Mato Grosso), eu tinha 50% de chance de precisar de uma já na noite de segunda-feira. 50% é um número bom para jogar na loteria, mas para jogar com a vida não é", declarou Botelho, ao justificar a ida para São Paulo.
A assessoria de imprensa de Botelho afirma que o deputado utilizou recursos próprios para viajar a São Paulo. A reportagem não obteve respostas se o deputado está pagando o hospital de modo particular ou se o plano de saúde dele cobre a internação.
No vídeo publicado nas redes, Botelho disse que foi encaminhado a uma unidade semi-intensiva logo que chegou ao Sírio Libanês, onde permanece. "Realmente precisei de oxigênio", comentou. O parlamentar afirmou que teve 50% dos pulmões comprometidos pela doença. O quadro de saúde dele é considerado estável.
As UTIs em Mato Grosso
Enquanto Maluf e Botelho recebem tratamentos em unidades de São Paulo, a população mato-grossense enfrenta a pior situação na saúde desde o início da pandemia do novo coronavírus.
A Secretaria de Saúde do Estado afirma que 93,1% dos 275 leitos de UTI destinados a pacientes com a covid-19 estão ocupados. O Governo de Mato Grosso declara que tem trabalhado com urgência para ativar mais 204 leitos de UTI para pacientes com o novo coronavírus.
A falta de UTIs no Estado preocupa o promotor de Justiça Alexandre Guedes, da Área de Cidadania e Saúde Pública de Cuiabá. Ele afirma que, apesar de o governo de Mato Grosso apontar que quase 7% dos leitos de UTI estão disponíveis, na prática não há vagas. "Essa pequena porcentagem que sobra é referente ao período em que um paciente sai e logo entra outro no leito. Não há mais vaga em nenhum lugar, por isso há dezenas de liminares solicitando UTIs", diz.
"Antes da pandemia, já faltava vaga na rede pública. Mas o Estado podia mandar o paciente para a rede privada. Agora, nem isso pode ser feito mais, porque não há vaga em nenhum lugar", acrescenta Guedes.
O promotor comenta que as dificuldades na saúde pública de Mato Grosso existem há décadas. "Não há uma solução rápida que vai resolver isso", diz. Para Guedes, a principal medida para contornar a situação do novo coronavírus no Estado é o isolamento social. Na noite de quinta-feira (16), a pedido do Ministério Público do Estado, a Justiça prorrogou a quarentena na capital mato-grossense e em Várzea Grande, cidade vizinha, por mais sete dias. "Vamos solicitar a prorrogação dessa medida enquanto Cuiabá e Várzea Grande (município vizinho) forem consideradas áreas de risco sanitário muito alto."
Mesmo com uma determinação da Justiça para a adoção da quarentena, Guedes ressalta que as medidas de isolamento não são seguidas adequadamente.
"A quarentena está em vigor, mas há uma baixa adesão social, por isso os casos continuam aumentando. Há uma certa resistência do setor econômico em aplicar o isolamento. Existe, até certo ponto, falta de vontade política em adotar essas medidas", diz o promotor.
Aumento de casos
Nas últimas semanas, as regiões Sul e Centro-Oeste passaram a registrar crescimento de casos no país, enquanto outras regiões passam por período de estabilização da curva da covid-19.
Mato Grosso se destaca entre os novos Estados altamente castigados pelo novo coronavírus. Segundo o MonitoraCovid-19, plataforma criada por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Estado apresentou grande crescimento de mortes no país nas últimas semanas: em 12 dias, os números de óbitos dobraram.
Pesquisador da Fiocruz, o epidemiologista Diego Xavier aponta que Mato Grosso atualmente enfrenta uma das situações mais difíceis no país em relação à covid-19. "Não se prepararam. No começo, muita gente acreditava que a doença não chegaria, porque é uma região muito quente. Não fizeram o isolamento adequado. No princípio, a capital até fez isolamento, mas as cidades vizinhas não fizeram. Essas medidas de isolamento precisam ser compartilhadas entre os municípios próximos", declara.
"Mato Grosso está em uma situação muito ruim. Além de ter, atualmente, uma das piores taxas de crescimento da covid-19 no país, não tem leitos", declara o pesquisador.
Xavier considera que falhas em gestões locais impulsionaram ainda mais as dificuldades enfrentadas atualmente no Estado. Ele cita uma situação de meados de junho, que classifica como "absurda". Na época, o Ministério da Saúde desabilitou 89 leitos de UTIs de hospitais destinados à covid-19 em cinco municípios de Mato Grosso e determinou a devolução de R$ 12,8 milhões à União, valor que era destinado a essas unidades.
Foram desabilitados 60 leitos (50 adultos e 10 pediátricos) em Cuiabá, cinco em Várzea Grande, oito em Tangará da Serra, 10 em Rondonópolis e seis em Sorriso.
O Ministério da Saúde apontou que as unidades desabilitadas não estavam em funcionamento. Os municípios justificaram que os leitos para a covid-19 foram transferidos para outras unidades de saúde da região. Desta forma, alegaram que devolveriam os recursos federais, pois estes somente poderiam ser destinados aos locais definidos inicialmente. Representantes das cidades afirmaram que o fato não prejudicaria o enfrentamento à pandemia.
Na capital, por exemplo, o prefeito Emanuel Pinheiro (MDB) disse que os 60 leitos desabilitados no Hospital Municipal, até então dedicados a pacientes com o novo coronavírus, seriam destinados a outras enfermidades. Na época, Pinheiro argumentou que isso não impactaria os casos de covid-19, pois outros hospitais municipais de Cuiabá estariam destinados a receber pacientes com a doença.
Xavier considera que faltou uma melhor avaliação dos gestores locais, que, segundo o pesquisador, subestimaram os impactos do novo coronavírus. "Devolver os recursos foi um absurdo. Agora eles precisam desses leitos e não têm", declara.
De acordo com Xavier, falhas em gestões locais e pouca adesão ao isolamento social estão entre os principais fatores que fizeram Mato Grosso chegar às dificuldades atuais. O pesquisador ressalta que o caos na saúde do Estado afeta, principalmente, os mais pobres. "Essas pessoas, que compõem a maioria da população, estão contando com a sorte de aparecer um leito de UTI", pontua.
O pesquisador pontua que nem sempre as pessoas mais pobres conseguem fazer isolamento social. "Muitos precisam pegar transporte público para trabalhar. Além disso, a densidade social em áreas pobres, como favelas, é muito grande. Como fazer isolamento em lugares assim?", diz.
"Já as pessoas mais endinheiradas pegam um avião e buscam uma UTI, se precisar. A 'nata' da população hoje pode se salvar e buscar tratamento em grandes hospitais. A pandemia veio para mostrar como a desigualdade mata", diz.
A BBC News Brasil procurou o deputado Eduardo Botelho e o presidente do TCE-MT, Guilherme Maluf, para comentar a atual situação no Estado. Porém, as assessorias de imprensa deles disseram que eles não estão concedendo entrevistas neste momento, pois estão focados em seus tratamentos.
Desigualdade social
Casos de pessoas que foram a outros Estados em busca de atendimento para a covid-19 em hospitais particulares não se restringem a Mato Grosso. Pelo país, há diversas histórias de ricos infectados pelo novo coronavírus que utilizaram aviões particulares para buscar atendimento em hospitais tidos como referência.
No Hospital Sírio Libanês, por exemplo, a reportagem apurou que um terço dos pacientes internados com a covid-19 não vive em São Paulo — a unidade de saúde não divulga a informação oficialmente.
Um estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio, apontou que o coronavírus mata mais pessoas negras e pobres no Brasil — fenômeno que se repete em outros países, como o Reino Unido e os Estados Unidos.
O estudo analisou a variação da taxa de letalidade da doença no Brasil de acordo com variáveis demográficas e socioeconômicas da população. Cerca de 30 mil casos de notificações de covid-19 até 18 de maio disponibilizados pelo Ministério da Saúde foram levados em conta.
Segundo o estudo, divulgado pela BBC News Brasil em 12 de julho, pessoas sem escolaridade tiveram taxas três vezes superiores (71,3%) às pessoas com nível superior (22,5%) em relação à morte por covid-19. Se cruzarmos escolaridade e raça, o levantamento aponta que pretos e pardos sem escolaridade tiveram 80,35% de taxas de morte, contra 19,65% dos brancos com nível superior.
"A desigualdade social tem impacto direto nos óbitos entre os mais pobres e com menor escolaridade", disse, na reportagem publicada no último dia 12, uma das responsáveis pelo estudo, a pesquisadora Paula Maçaira, do Departamento de Engenharia Industrial do CTC/PUC-Rio. "Quanto mais desfavorável a situação do paciente, mais chances ele tem de falecer."