Assustada pela epidemia de SARS que eclodiu em 2002, a China criou um sistema para reportar doenças infecciosas que as autoridades garantiram ser de primeira linha: rápido, minucioso, e igualmente importante, imune a interferências. Hospitais podiam inserir dados de pacientes em um computador e instantaneamente notificar autoridades de saúde em Pequim, onde profissionais eram treinados para localizar surtos antes deles se propagarem.
Mas ele não funcionou como deveria. Depois que os médicos em Wuhan começaram a tratar pacientes acometidos por uma misteriosa pneumonia em dezembro, o sistema de notificação deveria ter funcionado automaticamente. Em vez disso, hospitais recorreram às autoridades locais de saúde que, por aversão política a compartilhar más notícias, ocultaram informações do sistema - mantendo Pequim no escuro.
As principais autoridades de saúde ficaram sabendo do surto apenas após o vazamento de documentos online. Mesmo depois que Pequim se envolveu, as autoridades locais estabeleceram critérios estritos para a confirmação de casos, deixando de fora a informação de que o vírus estava se espalhando. Médicos tiveram que ter seus casos confirmados por burocratas antes deles serem notificados.
Enquanto o resto do mundo luta para conter o coronavírus, a China se apresenta como modelo, derrubando um surto feroz a ponto de começar a estimular restrições onerosas que agora são impostas por todo o mundo. Essa narrativa oculta as falhas iniciais na notificação dos casos, desperdiçando tempo que poderia ter sido usado para frear as infecções antes delas se tornarem uma pandemia.
"De acordo com as regras, isso, é claro, deveria ter sido notificado", disse Yang Gonghuan, um oficial de saúde aposentado que esteve envolvido no desenvolvimento do sistema de notificações. "Claro que eles deveriam ter aproveitado essa informação para descobrir e entender o que estava acontecendo."
Uma ação agressiva apenas uma semana antes em meados de janeiro poderia ter reduzido o número de infecções em dois terços, segundo um estudo recente. Outro estudo constatou que se a China tivesse feito algo três semanas antes, talvez isso pudesse ter prevenido 95% dos casos no país.
"Eu me arrependo de não ter continuado gritando com toda a minha força naquele momento", disse Ai Fen, um dos médicos do Hospital Central de Wuhan que detectou casos em dezembro, em uma entrevista para uma revista chinesa. "Muitas vezes me pego pensando no que poderia ter sido se eu pudesse voltar no tempo."
O líder da China, Xi Jinping, procurou deixar para trás as falhas iniciais e desviar a atenção para o esforço em acabar com o surto. A liderança central concentrou a culpa nos burocratas locais. Foram demitidas duas autoridades da saúde e os secretários do partido da província de Hubei e sua capital, Wuhan.
Agora, entrevistas, documentos vazados e investigações pela imprensa chinesa revelam como um sistema construído para proteger os conhecimentos médicos e os relatórios de infecção de adulterações políticas sucumbiu a adulterações. As falhas nas primeiras semanas "reduziram bastante a vigilância e a autoproteção do público e até dos profissionais da área médica, dificultando a contenção da epidemia", apontou um estudo da epidemia realizado por 12 médicos especialistas da Universidade de Shanghai Jiao Tong.
Preparando-se para o pior
Ano passado, as autoridades de saúde exalavam confiança de que a China nunca mais sofreria uma crise como a da SARS. Em julho, o Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças realizou seu maior exercício de treinamento contra surtos infecciosos desde a epidemia de SARS em 2002 e 2003, mostrando avanços feitos desde que a SARS matou centenas e traumatizou o país.
Mais de 8,2 mil funcionários participaram do treinamento, focado em um viajante que chegava do exterior com febre, desencadeando uma caçada a outros passageiros que pudessem ter sido infectados. Eles correram para mostrar que podiam rastrear, identificar e conter o vírus de maneira rápida e eficaz, inclusive notificando Pequim.
As defesas da China se concentravam no Sistema Nacional de Denúncia Direta de Doenças Contagiosas. Iniciado em 2004, foi projetado para impedir a repetição da epidemia de SARS. Usando esse sistema, os agentes de saúde de Pequim podem examinar relatórios de hospitais ou centros locais, detectando sinais de alerta poucas horas depois que um médico diagnosticou uma infecção problemática, como cólera ou tuberculose.
"Vírus como o da SARS podem surgir a qualquer momento, mas nunca haverá outro incidente como o da SARS", disse Gao Fu, diretor do Centro de Controle de Doenças da China, em discurso no ano passado. "Isso acontece graças à forma como o nosso sistema nacional de vigilância de doenças contagiosas funciona."
O sistema ajudou quando a China e outros países sofreram surtos de influenza aviária. E em novembro passado, o Centro de Controle de Doenças da China alertou a população sobre um surto de peste pneumônica na Mongólia Interior, escassamente povoada após apenas dois casos.
Desde o surto em Wuhan, alguns médicos disseram não ter certeza de como relatar casos precoces, que não se enquadravam na lista padrão de infecções. Porém, infecções pouco compreendidas ainda podiam ser registradas como "pneumonia de etiologia desconhecida" - ou causa desconhecida. As autoridades de saúde chinesas alertaram os hospitais para procurar esses casos atípicos. Gonghuan disse: "Esta foi uma maneira de capturar um surto enquanto estava em estágio embrionário".
'Era uma febre impossível de baixar'
No Hospital Central de Wuhan, Fen foi um dos primeiros a notar um padrão entre os pacientes que chegavam aos hospitais da cidade com tosse seca, febre alta e letargia debilitante. A tomografia computadorizada, muitas vezes revelou danos extensos aos pulmões desses pacientes. "Era uma febre impossível de baixar", disse Fen sobre um paciente que viu em 16 de dezembro, segundo uma revista chinesa chamada People. "Os remédios usados não funcionavam e a temperatura dele não se alterava".
Até o fim daquele mês, os Centros Locais de Controle de Doenças em Wuhan estavam recebendo ligações de médicos, contando os casos estranhos de pneumonia que frequentemente pareciam ligados ao mercado de frutos do mar de Huanan. Sete em um hospital, três em outro e mais três em outro. "Esses pacientes podem ser infecciosos. Cuidar deles em um hospital geral é um risco à segurança", alertou Huang Chaolin, médico do Hospital Jinyintan, a principal instalação de doenças infecciosas da cidade.
Em teoria, os médicos poderiam ter relatado esses casos diretamente, mas os hospitais chineses também respondem às burocracias do Partido Comunista. Os hospitais costumam recorrer às autoridades de saúde locais para relatar infecções problemáticas, aparentemente para evitar surpreender os líderes locais.
Essa consideração deu às autoridades de Wuhan uma abertura para controlar informações sobre o vírus. Os escritórios locais de Controle de Doenças haviam contabilizado 25 casos até 30 de dezembro, de acordo com um relatório vazado na Internet em fevereiro. Esse documento foi uma das primeiras tentativas de Wuhan para entender a extensão dos casos e listou pacientes que ficaram doentes a partir de 12 de dezembro.
"A administração local de saúde claramente optou por não usar o sistema de notificações", disse Dali Yang, professor da Universidade de Chicago que estuda a formulação de políticas na China. "Está claro que eles estavam tentando resolver o problema dentro da província."
A notícia do surto começou a chegar às autoridades em Pequim depois que rumores e documentos vazados se espalharam pela Internet. Os médicos alertaram os colegas sobre o surto em conversas de grupo privadas nas mídias sociais, o que provocou repreensões oficiais. Fu, o diretor do Centro de Controle de Doenças, localizou as informações circulando online e disparou os alarmes. O centro ordenou que os especialistas corressem para Wuhan. O primeiro chegou na manhã seguinte.
Funcionários da Comissão Nacional de Saúde disseram que ordenaram que Wuhan emitisse seu primeiro anúncio oficial sobre o surto em 31 de dezembro. Naquele dia, o governo também informou a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os casos foram finalmente inseridos no sistema em 3 de janeiro.
Critérios estritos
As autoridades locais aparentemente receberam especialistas enviados por Pequim. "Eles disseram que a doença era bastante leve, não muito diferente da gripe sazonal, e que não haveria contágio entre centenas de pessoas com contato próximo", disse Zeng Guang, epidemiologista chinês que visitou Wuhan em 9 de janeiro, de acordo com o jornal China Youth Daily. "Eles pareciam muito tranquilos."
Nos bastidores, as autoridades de Wuhan fizeram um esforço para limitar o número de infecções contabilizadas como parte do surto, criando barreiras contra os médicos que arquivavam casos. Um relatório divulgado descreve como, na primeira quinzena de janeiro, as autoridades locais disseram aos médicos que os casos tinham que ser confirmados pelos superintendentes burocráticos.
A partir de 3 de janeiro, a Comissão de Saúde de Wuhan estabeleceu critérios estritos para confirmar que um caso fazia parte do surto: os pacientes podiam entrar na lista de casos se tivessem passado pelo mercado ou tivessem tido contato próximo com um paciente que foi ali. Isso excluiu um número crescente de casos prováveis.
Durante a maior parte da primeira metade de janeiro, as autoridades locais sustentaram que não havia novas infecções confirmadas, mesmo com médicos e especialistas visitantes suspeitando que um contágio perigoso estava se espalhando de pessoa para pessoa. Os especialistas terminaram sua avaliação de Wuhan em 19 de janeiro, convencidos de que o vírus havia chegado a um ponto alarmante.
"Todos os membros da equipe de especialistas relataram que a situação era sombria", disse Yuen Kwok-yung, professor de doenças infecciosas da Universidade de Hong Kong que fazia parte da equipe, à revista Caixin. "Medidas preventivas tiveram que ser implementadas imediatamente." Após semanas sem relatar novas infecções, Wuhan divulgou quatro novos casos em 18 de janeiro, 17 no dia seguinte e 136 um dia depois. Quatro dias mais tarde, Wuhan entrou em estado de confinamento total.
Na época, o coronavírus tinha matado 26 pessoas e infectado mais de 800. No final de março, havia mais de 820 mil casos em todo o mundo, com um número de vítimas superior a 40 mil.
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