Em Pernambuco, a proliferação de casos de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, tem diariamente percorrido o caminho em direção ao interior do Estado.
Mas, pelo menos por ora, o vírus segue uma rota em particular: ele afeta principalmente cidades próximas ou cortadas por uma importante rodovia federal, a BR-232.
O trajeto da doença por essa estrada não é uma mera coincidência, segundo pesquisadores que têm analisado a disseminação do vírus no Estado.
A rota do coronavírus pelo interior pernambucano segue uma lógica econômica, social e logística. Até esta sexta-feira (17/04), o Estado tinha 2.006 casos confirmados e 186 mortes.
As primeiras infecções surgiram no Recife no início de março, em bairros de classe média alta, como Boa Viagem e Jaqueira — até hoje eles ainda são os mais afetados em números absolutos.
"Recife tem um aeroporto internacional. A covid-19 apareceu primeiro nos hospitais particulares, com pacientes que haviam acabado de chegar da Europa", explica Jones Albuquerque, pesquisador do Instituto para Redução de Riscos e Desastres de Pernambuco (IRRD-PE), órgão ligado às universidades federais de Pernambuco (UFPE e UFRPE) e que tem feito análises diárias sobre o cenário da doença.
Depois, o vírus se espalhou para áreas mais pobres e municípios da região metropolitana — em boa parte, ele pode ter chegado nesses pontos por meio de pessoas que trabalham em bairros ricos e moram na periferia.
Agora, uma segunda onda atinge o Estado: a interiorização da covid-19 para cidades pequenas e médias do início do sertão e do agreste pernambucano, como Arcoverde e Caruaru.
A maioria dos municípios com novos casos nas últimas semanas, ainda que eles sejam poucos em números absolutos, está localizada no entorno da BR-232.
A rodovia federal, que tem 552 quilômetros de extensão, corta Pernambuco do litoral ao sertão — do Recife à cidade de Parnamirim —, embora a estrada continue com outro nome, PE-316, até o município de Araripina, na divisa com o Piauí.
"A BR-232 é o nosso grande distribuidor de coronavírus", diz Albuquerque.
Pesquisadores e médicos apontam dois cenários que podem ter influenciado essa a interiorização.
O primeiro diz respeito a uma característica social do Estado. "As classes mais abastadas do Recife têm casas de veraneio em cidades do interior que são cortadas pela BR-232, ou estão próxima a ela", explica o médico José Luiz de Lima Filho, diretor Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (Lika), da UFPE.
"Então, há esse trânsito de pessoas que saem do Recife para essas cidades no fim de semana ou feriados. Se algumas delas estavam infectadas, mesmo que assintomáticas, podem ter levado o vírus para os municípios menores e passado para outras pessoas", diz Lima Filho.
Segundo os pesquisadores, outro fator que pode ter contribuído foi a suspensão das aulas de todas as universidades do Recife — públicas e particulares —, no dia 8 de março. Boa parte desses estudantes vem do interior e, sem aulas, eles voltaram para suas cidades de origem.
"A suspensão foi uma ótima medida, pois ocorreu bem no início dos casos no Estado. Se isso não tivesse ocorrido, é provável que mais alunos tivessem se infectado, o que aumentaria mais os casos e a capacidade de transmissão da doença", diz Albuquerque.
Interiorização em São Paulo
Essa dinâmica de distribuição da covid-19 em cidades do interior próximas a grandes rodovias não é exclusiva de Pernambuco. Em São Paulo está ocorrendo o mesmo movimento, segundo análise de dados produzida por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP).
Com a quarentena decretada na capital, mas a manutenção das estradas abertas, houve um grande trânsito de pessoas voltando para suas cidades de origem, no interior.
"A maior parte dos casos do interior paulista está distribuída em cidades cortadas por grandes rodovias que ligam esses municípios à capital, como Anhanguera, Dutra, Imigrantes, entre outras", explica Domingos Alves, professor de Medicina Social da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.
Ele cita o caso de Santos, no litoral paulista, que tinha, até a quinta-feira, 56 casos de covid-19 por 100 mil habitantes — na capital esse índice era 52 ocorrências por 100 mil.
Alves divide a disseminação da pandemia em três ondas no Brasil.
Na primeira, grandes capitais foram atingidas pelos primeiros casos, como São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza. Depois, eles se espalharam para bairros mais distantes e regiões metropolitanas.
Já a segunda onda, que está ocorrendo neste momento, é a interiorização da doença para cidades médias, próximas a grandes rodovias que ligam esses municípios às capitais.
Um terceiro ciclo seria a chegada do vírus a municípios menores, com poucos habitantes, e mais afastados dos grandes centros — isso ocorreria por meio do trânsito de pessoas acessando esses locais por meio de estradas vicinais.
"É muito preocupante o que pode ocorrer com esses municípios pequenos e médios, pois a maioria deles não tem estrutura hospitalar e de saúde suficientes para cuidar das pessoas. Há cidades no Brasil que não têm sequer um médico. Se já está difícil nas capitais, que têm mais condições, imagina nessas cidades do interior, do sertão, da Amazônia", explica Alves à BBC News Brasil, por telefone.
Como ocorreu a transmissão entre pessoas?
Parte significativa dos infectados pelo novo coronavírus é assintomática ou apresenta sintomas leves, mas, mesmo assim, eles podem transmitir o vírus para outros — estudos apontam que até 80% das infecções são dessa classe, a depender da idade do paciente.
No início da pandemia, brasileiros que voltaram ao país vindos de locais com incidência de covid-19 chegaram a se isolar para evitar transmitir o vírus.
Porém, isso não aconteceu — pelo menos não de maneira massiva — com viagens entre as capitais e o interior, quando o vírus já circulava nas grandes cidades.
Para Domingos Alves, professor de medicina da USP, esse "sistema de transmissão perverso" é agravado pelo fato de o Brasil só testar pessoas com sintomas graves — assim, parte da massa de assintomáticos ou com sintomas brandos pode estar transmitindo o vírus sem nem saber que estava infectada.
"O coronavírus é muito mais contagioso do que a gripe comum. Se você não testa massivamente e não mantém o isolamento social, o vírus se espalha exponencialmente", diz Alves.
Uma projeção da USP, produzida com um modelo estatístico usado por países europeus para medir o alcance da pandemia, apontou que o número de infecções pelo novo coronavírus no Brasil é de 12 a 15 vezes maior do que os dados oficiais divulgados pelo governo federal.
Segundo o Ministério da Saúde, até a sexta-feira (16/4), o país tinha 33.682 casos confirmados de covid-19 — 2.141 pessoas haviam morrido da doença.
O que cidades de Pernambuco estão fazendo?
Na rota da BR-232, a cidade de Caruaru tinha 10 casos de coronavírus confirmados até esta quinta — um homem de 87 anos morreu da doença. Outras 40 pessoas apresentaram sintomas, e ainda aguardam o resultado de exames.
Três desses 10 casos foram "importados": são pessoas que tinham viajado para o exterior e voltaram a Caruaru, de acordo com Francisco Santos, secretário municipal de Saúde.
Diariamente, a cidade costuma receber milhares de turistas por causa de sua famosa feira ao ar livre. Esse mercado é o maior ponto de vendas da importante indústria têxtil localizada em cidades próximas, como Toritama. Mas, por ora, ele está fechado.
Para tentar frear a entrada do vírus, Caruaru montou barreiras sanitárias nas principais entradas da cidade — algumas delas na BR-232. Quem passa por ali é parado, tem a temperatura medida por agentes de saúde e responde se apresenta sintomas de covid-19.
"Já paramos 60 mil pessoas nessas barreiras. Mas nós temos 36 entradas e saídas em Caruaru. Infelizmente, não conseguimos atuar em todos os locais", diz o secretário Francisco Santos.
Segundo ele, a cidade tem aumentado o número de leitos de UTI nas redes públicas e privada e feito campanhas educativas sobre a importância do distanciamento social.
Outra cidade afetada pelo vírus na rota da BR-232 é Arcoverde, no início do sertão pernambucano — o município tem quatro casos confirmados, três suspeitos e uma morte por covid-19.
"Estamos visitando as pessoas que vêm do Recife e orientando que elas permanecem em quarentena", diz Gledemario Cursino, assessor jurídico da Secretaria Municipal de Saúde de Arcoverde.
A cidade também tem apostado em barreiras sanitárias nas vias de entrada, onde são feitas medições de temperatura e questionários sobre o quadro clínico.
Pressão na quarentena
Para André Longo, Secretário Estadual de Saúde de Pernambuco, o coronavírus vai se espalhar pelo interior "inevitavelmente".
"O interior vai ser ser atingido. Não adianta alimentar falsas esperanças", disse Longo, em entrevista à imprensa. Segundo ele, o governo estadual tem aberto novos leitos em cidades do interior.
"Estamos atentos a esse movimento (do vírus ao interior). É fundamental que as medidas de isolamento social funcionem para enfrentarmos esse momento. Nossa curva está em aceleração e o número de casos graves têm mais do que duplicado nas emergências, nas últimas duas semanas", afirmou o secretário.
O professor Domingos Alves, da Faculdade de Medicina da USP, acredita que medidas de isolamento mais rígidas em cidades interioranas podem ser uma das soluções para frear a pandemia no Brasil e desacelerar o colapso no sistema de saúde.
"Se tiver um isolamento de 70% nesses municípios médios e pequenos, você diminui as chances de ter novos pacientes graves nesses locais, porque provavelmente eles seriam levados para hospitais das cidades grandes. Com isso, será possível desafogar um pouco o sistema, que já está sufocado", diz.
Em Caruaru, por exemplo, a prefeitura decretou quarentena, fechou o comércio e cancelou a tradicional festa de São João, que costuma atrair centenas de milhares de turistas em junho.
Segundo Francisco Santos, secretário de saúde, toda a população se mobilizou na quarentena nas primeiras semanas, mas o cenário tem mudado nos últimos dias.
"As pessoas pensam que, como os casos não aumentaram muito na cidade, o problema não é tão grave assim e todo mundo pode voltar à vida normal. Mas não é isso, ainda estamos no início. Já estamos enfrentando muita pressão para reabrir o comércio, porque muita gente depende dele para sobreviver em Caruaru", diz.
Colaboraram Camilla Costa e Cecilia Tombesi