A escalada de casos do novo coronavírus obrigou o Chile a mudar sua estratégia no combate à covid-19. Após uma série de erros, incluindo questionamentos sobre as estatísticas de óbitos, que levaram à queda do ministro da Saúde, o país andino intensificou controles para tentar evitar a expansão do vírus.
O novo ministro da Saúde, Enrique Paris, afirmou nesta semana que a curva de casos está em queda, mas destacou que é cedo para comemorar e para dizer quando a quarentena será suspensa nos municípios onde a medida vem sendo aplicada.
Na quinta-feira (16), com mais de 320 mil casos confirmados de covid-19, o ministro Paris informou que o total de infectados, por dia, na região metropolitana de Santiago, a mais afetada do território chileno, caiu quase dez vezes em um mês. Os mais de 5.700 casos diários, em 14 de junho, retrocederam para 690, em 15 de julho. Foi o número mais baixo em 77 dias, disse ele.
"As melhoras têm sido evidentes e contínuas. Mas é cedo para falar no fim das quarentenas onde a medida é realizada", afirmou Paris. Ele fez a ressalva que, em termos nacionais, houve aumento de mais de 700 casos entre quarta e quinta-feira, o que justifica sua cautela. O ministro também observou ainda que a grande maioria — em torno de 90% — dos infectados se recuperou, até o momento.
Para tentar reverter a disparada de novos casos, que colocou o Chile entre os países com mais infectados do mundo — perdendo apenas para o Brasil e o Peru na região, de acordo com levantamentos da Universidade Johns Hopkins —, o governo do presidente Sebastián Piñera implementou uma nova bateria de medidas.
Elas incluem exigências como a de um código QR, emitido pelas delegacias e que tem poucas horas de validade, para as pessoas poderem sair de casa duas vezes por semana. Até poucos dias, era permitido ir à rua cinco vezes por semana e depois do preenchimento de um simples formulário, de difícil fiscalização por parte das autoridades.
O código QR é exigido, por exemplo, para entrar nos supermercados e farmácias, setores essenciais que funcionam onde a quarentena foi implementada.
Nos últimos dias, o policiamento passou a ser ainda mais ostensivo nas ruas e avenidas, com a detenção e aplicação de multas, que podem chegar a até o equivalente a US$ 8 mil (quase R$ 43 mil), para os que não têm autorização para circular ou para abrir seus comércios.
O governo mudou sua estratégia de "quarentenas dinâmicas", que eram por bairros e passaram a ser por municípios. Quando eram limitadas aos bairros era possível mover-se de um bairro com quarentena para outro sem apenas atravessando uma rua ou avenida.
O polêmico toque de recolher, entre 22h e 5h da manhã, implementado no dia 24 de março, continua em vigor. Mas apesar da medida, cuja aplicação envolve mais de 20 mil militares, foram registrados, nas noites de quarta e de quinta-feira, saques a comércios, ataques contra delegacias e incêndios em automóveis e ônibus em Santiago, a capital do país. Mais de 60 pessoas foram presas.
Os primeiros protestos e panelaços foram registrados enquanto deputados discutiam o projeto de lei que permite que os chilenos retirem, antecipadamente, 10% do dinheiro dos fundos de pensões. O governo é contrário à iniciativa de saques dos fundos, que ainda depende da aprovação do Senado, mas tem respaldo popular. Esses fundos são administrados pelo setor privado e geram queixas constantes no país porque, após anos de contribuição, o saldo a receber é menor do que o esperado pelos pensionistas.
Na sua ofensiva para conter a escalada de casos de covid-19, o Chile, com um dos mais altos índices na América do Sul de uso testes PCR (de detecção do coronavírus), passou a realizar rastreamento e isolamento das pessoas que tiveram contato com alguém infectado.
"Passamos a adotar a medida há duas ou três semanas. Realmente era o que faltava para que pudéssemos evitar a propagação do vírus. Se houve alguma falha, foi a falta de implementação dessa rastreabilidade anteriormente", disse à BBC News Brasil o médico infectologista Miguel O'Ryan, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade do Chile e integrante do comitê que assessora o Ministério da Saúde no combate à covid-19.
O'Ryan afirmou que os dados recentes mostram a "curva descendente" do número de casos positivos de coronavírus, incluindo a região metropolitana de Santiago, com a maior densidade demográfica do país e que reúne cerca de 7 milhões do total de quase 18 milhões de habitantes do Chile.
"Somos, de longe, o país que mais realiza testes para a covid-19 por milhão de habitantes na região e isso nos permite ter uma estratégia eficaz contra a doença", disse o especialista que integra a Academia Chilena de Medicina. O percentual de casos positivos, que tinha chegado a superar os 30%, agora está abaixo de 20%, disse.
Ambulâncias
Levantamento recente mostrou que o Chile realiza cerca de 40 mil testes por milhão de habitantes (quatro vezes mais do que o Brasil, que tem quantidade de mortes dez vezes maior que os chilenos).
O'Ryan lembrou que o país adotou ainda medidas inéditas para sua trajetória como a aliança entre os setores público e privado da rede de saúde para a atenção médica e hospitalar na pandemia. Mesmo assim, foram registrados, em maio, casos de pacientes de covid-19 em estado grave, atendidos dentro de ambulâncias porque a emergência da rede pública estava lotada.
Mas em que o Chile, que costumava ser apontado como modelo econômico — até pelo menos os protestos de outubro passado e de outras ondas recentes de manifestações, que escancaram sua desigualdade social — errou na sua estratégia inicial contra os avanços da covid-19?
Quando o primeiro caso da doença foi registrado, em 3 de março, e os países da região ainda não aplicavam medidas contra o vírus, o governo do presidente Sebastián Piñera já tinha adquirido equipamentos necessários para o tratamento do coronavírus.
"Existe hoje, no mundo inteiro, uma verdadeira guerra mundial por respiradores, mas ainda bem que agimos antecipadamente e adquirimos os respiradores em janeiro", disse Piñera em abril, no mesmo mês em que o uso de máscara passou a ser obrigatório em lugares públicos e fechados.
Ele defendia que o Chile, país que governa pela segunda vez, estava muito bem preparado para enfrentar a pandemia. Mas não foi assim. Dias antes dessa fala do presidente, em 24 de março, ele já tinha decretado o toque de recolher em todo o país, na tentativa de evitar aglomerações noturnas. A medida polêmica continua em vigor.
Realidade social
A falta de conhecimento sobre a realidade social chilena foi o que complicou o ambiente de luta contra a pandemia no país, dizem os cientistas políticos Julieta Suárez Cao, da Universidade Católica do Chile, e Guillermo Holzmann, da Universidade de Valparaíso.
"O então ministro da Saúde chegou a dizer que não sabia que tanta gente vivia amontoada (em casas pobres e pequenas) no país e que por isso não podiam fazer o distanciamento social", disse Suárez Cao, que integra a Red de Politólogas (Rede de Cientistas Políticas da América Latina).
Com uma das economias mais abertas do mundo, o Chile manteve em tempos democráticos as principais linhas ortodoxas da era do ditador Augusto Pinochet (1974-1990), mas colocou o foco em reduzir a pobreza e a desigualdade social do seu sistema. Segundo dados oficiais, a pobreza era de quase 70% em 1990, quando Pinochet deixou o Palácio presidencial de La Moneda, e chegou a 8,6% em 2017, no último levantamento oficial.
Mas a pandemia evidenciou as carências dos bairros pobres e, de acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), a pobreza pode saltar para quase 14% da população, levando cerca de um milhão de chilenos às filas da exclusão neste ano.
"Os protestos de outubro passado eram demandas das classes médias, como uma Constituição da democracia. Agora, vimos protestos por comida de gente muito pobre", disse a professora argentina.
Aqueles protestos do fim de 2019 levaram Piñera a anunciar um plebiscito para a realização ou não da carta magna. Com a pandemia, a consulta popular foi adiada para outubro deste ano. A pandemia confirmou ainda que muitos chilenos estão endividados e agora não sabem como honrar suas dívidas e consideram "insuficientes" os auxílios emergências do governo, como declaram às TVs locais.
'Problemas latino-americanos'
Na visão de Holzmann, a pandemia do novo coronavírus mostrou que o Chile tem problemas como qualquer outro país da América Latina.
"Foram vários problemas juntos. A pandemia evidenciou com muita força a desigualdade social no país. Como os dados sobre os que realmente precisam de ajuda não são completos, teve gente que precisa (mas) ficou sem ajuda e outros que não precisam recebendo auxílios estatais. O governo distribui cestas de alimentos, mas os mais vulneráveis nem sempre as recebem. Por isso, existem as 'ollas populares' (comida feita por populares para distribuição), seja por necessidade ou por protesto", disse Holzmann.
Ele disse que nos três primeiros meses do ano o sistema de saúde foi fortalecido, mas o governo não conseguiu conter a escalada do vírus e ainda encarou crise política, além das crises social e econômica (a economia chilena caiu 15,3% em maio, segundo dados oficiais, e é esperada queda acima de 7% do PIB neste ano).
O então ministro da Saúde, Jaime Mañalich, caiu em desgraça quando a imprensa local revelou, há um mês, discrepâncias nas cifras de mortes por covid-19.
Na época, segundo o Centro de Pesquisa e Informação Jornalística (CIPER, na sigla em espanhol), o Chile informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) ter 5 mil mortos por coronavírus, e não os 3 mil informados internamente. O governo argumentou que os 3 mil tinham sido registrados em cartório como sendo vítimas da doença e que o restante correspondia aos que faleceram com os sintomas de covid-19, mas sem terem sido testados para o coronavírus.
Mortos
Nesta quinta-feira (16), o país tinha 7.290 mortos, registrados oficialmente com coronavírus, e um total de 11.227 falecidos, incluídos os casos prováveis da doença, que apresentaram sintomas mas não foram testados.
Ao então ministro foi atribuída ainda, como recordou Holzmann, a declaração de que o Chile, como a Inglaterra, tentaria adotar a "imunidade de rebanho". Ou seja, a expectativa de que a imunização das pessoas — sem quarentena ou outra medida preventiva — pudesse estancar a propagação e virulência do coronavírus. "A estratégia não funcionou. Agora, estamos vivendo uma segunda etapa da estratégia do governo", disse Holzmann.
O novo ministro da Saúde determinou, na semana passada, que duas das 16 regiões do país reabram suas atividades, como restaurantes e cafés, com um limite de 25% de suas capacidades. Mas insiste que é cedo para que a mesma abertura seja aplicada em outros lugares ainda sob quarentena.