Em 12 de março, a servidora pública Vera Lúcia Pereira completou 60 anos. Os dias que antecederam o aniversário, que no passado costumavam despertar alegria, se tornaram momentos de reflexão e tristeza. O período reacendeu as lembranças de sua festa do ano passado.
Na comemoração de março de 2020, Vera reuniu 28 pessoas em sua casa, em Itapecerica da Serra, na grande São Paulo. Dias depois, quase metade dos convidados foram infectados pelo novo coronavírus. O marido dela e dois cunhados morreram.
Vera classifica a comemoração do ano passado como um pesadelo. "Me questionei muito: por que isso aconteceu no meu aniversário? Por que na minha casa, onde sempre recebemos as pessoas com muito amor?", diz à BBC News Brasil.
Na data da festa de aniversário no ano passado, havia cerca de 100 casos de covid-19 confirmados em todo o país e nenhuma morte (o primeiro óbito foi confirmado posteriormente).
O isolamento social ainda era incipiente e as orientações referentes ao vírus se limitavam principalmente à higienização das mãos.
A partir de meados de março do ano passado, Estados adotaram medidas mais rígidas, como orientações para evitar aglomerações.
Atualmente, o país vive o pior período da pandemia, com mais de 290 mil mortes pela covid-19 e pacientes tendo de esperar na fila por leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).
Apesar disso, diversas festas — entre eventos pequenos ou com centenas de pessoas — continuam acontecendo.
"Me sinto indignada. Acho um desrespeito a todos os mortos e suas famílias", desabafa Vera sobre esses eventos no atual período.
"As pessoas precisam acreditar que (o coronavírus) é real. Elas não devem acreditar naquele que até hoje duvida do vírus, que é o presidente (Jair Bolsonaro)", declara Vera, em referência aos constantes discursos de Bolsonaro nos quais tenta minimizar a situação da pandemia no país.
A festa de 2020
A comemoração dos 59 anos de Vera aconteceu em 13 de março do ano passado, um dia depois do aniversário dela. O evento foi organizado por ela e pelo marido, o servidor público Paulo Vieira, que tinha 61 anos. Ela relata que foram chamados somente os parentes mais próximos, para evitar aglomeração.
"Eu me perguntava se seria boa ideia fazer a festa. Falei com o meu marido: vamos desmarcar, Paulo? Ele respondeu que não precisava, porque a situação não estava assim desse jeito a ponto de desmarcar…", comenta Vera.
O primeiro registro oficial de covid-19 no Brasil foi em 26 de fevereiro de 2020. Porém, estudos da Fiocruz apontaram, meses depois, que já existia transmissão comunitáriado vírus — quando não é possível identificar a origem da infecção — no início de fevereiro do ano passado.
Por isso, especialistas frisam que muitos eventos entre fevereiro e março, pequenos ou grandes, podem ter colaborado para a propagação do vírus no país.
Dias após a comemoração, diversos parentes de Vera começaram a apresentar sintomas de covid-19. A princípio, os familiares pensavam que não se tratava do coronavírus — em Itapecerica da Serra, por exemplo, ainda não havia nenhum registro na época.
Hoje, os parentes acreditam que algum convidado com sintomas leves pode ter transmitido o vírus para os demais. Vera e o filho, Igor Pereira, de 27 anos, tiveram sintomas leves da doença, assim como outros diversos convidados da festa, e logo se recuperaram.
Paulo e dois irmãos dele foram internados com os pulmões comprometidos. No hospital, os médicos disseram não ter dúvidas de que os sintomas deles apontavam que haviam sido infectados pelo coronavírus.
Em primeiro de abril, a aposentada Maria Salete Vieira, de 60 anos, não resistiu à covid-19. Nos dias seguintes, o mecânico Clóvis Vieira e Paulo também morreram.
Os exames de Maria Salete e Paulo confirmaram que eles haviam sido infectados pelo coronavírus. Já o resultado de Clóvis apontou que ele não estava com a covid-19, mas familiares e profissionais que acompanharam o caso afirmam que pode se tratar de um falso negativo. Isso porque, além de ter tido contato com pessoas infectadas, o mecânico teve severo comprometimento nos pulmões, quadro típico da doença, e outros sintoma da doença.
Desde as mortes dos três parentes, Vera e os familiares enfrentaram o que ela define como "um ano bem difícil". "A gente teve que se adaptar com as mudanças", lamenta.
A servidora pública teve de aprender a lidar com a ausência de Paulo, seu primeiro namorado e com quem estava casada havia 28 anos. "Temos convívio desde que a gente se conheceu, há cerca de 40 anos. Namoramos, ficamos sete anos separados, tivemos outros relacionamentos, mas depois voltamos e nunca mais nos separamos", detalha.
Ela conta que sente falta do marido em todos os momentos do dia. "O Paulo era uma pessoa presente em todos os momentos. É muito difícil olhar para a mesa de jantar e ele não estar ali, dormir e ele não estar ali… É difícil acordar todos os dias e precisar vestir a roupa da coragem para enfrentar a rotina. Não há outra saída a não ser caminhar, mas a falta dele vai ser eterna", desabafa Vera.
60 anos
Depois da morte do marido, Vera passou três meses afastada do trabalho, usando licenças e férias que tinha acumulado ao longo dos últimos anos.
Posteriormente, retornou ao serviço, no setor de Recursos Humanos da Prefeitura de Itapecerica da Serra.
Ela considera que a atividade, na qual lida com servidores com problemas como dependência química ou depressão, tem sido fundamental para lidar com a ausência do marido. "Há, por exemplo, muitos casos de pessoas que perderam parentes para a covid, como eu. E, quando estou no trabalho, preciso esquecer a minha dor para acolher essas pessoas."
Ela comenta que está isolada junto com o filho há cerca de um ano, com exceção das horas no trabalho, que foi suspenso na semana passada por 15 dias, em razão da explosão de casos de covid-19.
Quando a pandemia for controlada, planeja ficar mais perto fisicamente dos outros familiares.
"Foi um ano muito difícil. Todo mundo acaba sofrendo com a situação e a gente não pode estar perto de muitas pessoas que a gente ama. Os encontros familiares suspensos. Muitos aniversários não foram festejados com a família. Não fizemos encontros para tomar café, como fazíamos todos os fins de semana na casa da minha cunhada…", diz.
A servidora pública sonha com viagens e reencontros com familiares quando a pandemia estiver controlada.
Porém, ela admite que esses momentos ainda estão longe de acontecer, diante do atual contexto da pandemia no país.
Vacinada, por fazer parte do grupo prioritário por trabalhar diretamente na área de saúde do servidor em sua cidade, ela lamenta o atual cenário do coronavírus no país. "Se o governo federal não negasse sempre o perigo da pandemia e tivesse adquirido as vacinas com antecedência, hoje o quadro seria outro", declara, em referência ao atual ritmo da vacinação no país.
Por não haver sinal de melhora na situação da pandemia no Brasil, Vera não cogitou qualquer reunião familiar para comemorar os seus 60 anos. Quando a data do aniversário se aproximou, a servidora pública voltou a sofrer intensamente com as perdas após a sua festa em 2020.
"Passei a semana anterior ao meu aniversário deste ano com muita tristeza e lembrando que foi um dia muito feliz no ano passado. Foi o último dia em que a família se reuniu. Pensei muito nisso. Meus familiares até ficaram com medo de que eu entrasse em depressão", relata.
O apoio do único filho foi fundamental para ela enfrentar o período de uma forma mais leve. "Ele disse: mãe, o aniversário é um dia que precisa ser comemorado. É mais um dia de vida. Precisamos celebrar e (o que aconteceu no ano passado) foi apenas uma coincidência, que poderia ter acontecido em qualquer outro dia", conta Vera.
Na noite de aniversário, ela encomendou um bolo e planejava passar a data somente com o filho. "Quando ele desceu pra pegar o bolo, me disse pra ir junto. Eu falei que não tinha necessidade, mas ele insistiu e fomos (com máscaras). Enquanto a gente ia descendo as escadas, comecei a escutar as buzinas", relata.
Em frente à casa de Vera, amigos e familiares dela passaram em carros buzinando e desejando feliz aniversário.
Com máscaras, duas irmãs dela e uma cunhada — as responsáveis pela surpresa — seguraram o bolo.
"Foi uma maneira que encontraram de dar uma mensagem de que eu deveria esquecer aquele dia do ano passado. Foi uma surpresa maravilhosa e inesquecível", diz Vera. "Percebi que sou muito amada. As pessoas têm um carinho por tudo o que passamos", acrescenta.
A homenagem foi breve, mas marcante. Ela diz que as demonstrações de carinho a ajudaram a encarar o aniversário de forma mais leve. "Hoje, tento encarar o dia 12 de março como um dia de esperança e renascimento. Não posso ficar pensando que seja algo ruim, porque senão como seria a vida daqui pra frente? E o meu marido, com certeza, não gostaria que eu ficasse assim", declara.
E quando se recorda da comemoração de um ano atrás, uma das lamentações de Vera é que eventos como o seu, que terminaram em infecções pelo coronavírus, não tenham servido de exemplo para muitas pessoas que continuam participando de festas.
"Acho que muitos não acreditam que é tão grave, talvez porque não perderam ninguém da família ou um amigo. E, por outro lado, temos um líder que quer mostrar a todo instante que (a covid-19) não é nada, é apenas uma gripezinha", afirma.