Coronavírus: o que podemos aprender com as pandemias da ficção?

Sobrevivência, isolamento, senso de comunidade e amor são temas explorados em livros que parecem prescientes. A autora americana Jane Ciabattari escreve sobre os romances que nos dizem que 'já passamos por isso antes'.

27 abr 2020 - 07h32
(atualizado às 08h04)

Em tempos incertos e estranhos como estes, em que cumprimos nosso isolamento social para achatar a curva de contágio, a literatura fornece escapismo, alívio, conforto e companhia. Porém, o apelo da ficção pandêmica também aumentou. Muitos títulos pandêmicos parecem guias para a situação de hoje. E muitos desses romances descrevem epidemias numa progressão cronológica realista, dos primeiros sinais de problema aos piores momentos, e o retorno à "normalidade". Eles nos mostram que já passamos por isso antes.

Um Diário Do Ano Da Peste, de Daniel Defoe, publicado em 1772, que narra a peste bubônica de 1665 em Londres, conta uma série de eventos sinistros que lembram nossas próprias respostas ao choque inicial e à propagação voraz do novo vírus.

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Defoe começa sua história em setembro de 1664, quando circulam rumores sobre o retorno da 'pestilência' à Holanda. Em seguida, vem a primeira morte suspeita em Londres, em dezembro, e depois, na primavera, Defoe descreve como os avisos de morte publicados nas paróquias locais tiveram um aumento sinistro. Em julho, a cidade de Londres impõe novas regras - regras que estão se tornando rotineiras em 2020, como "que todas as festas públicas, jantares em tabernas, cervejarias e outros locais de entretenimento comum sejam suspensos até novas ordens".

Em agosto, Defoe escreve, a peste estava "muito violenta e terrível"; no início de setembro, atingiu o seu pior, com "famílias inteiras, ruas inteiras de famílias... desaparecendo juntas". Em dezembro, "o contágio estava esgotado, e também o clima do inverno acelerava, e o ar estava limpo e frio, com geadas fortes... a maioria dos que haviam adoecido se recuperou e a saúde da cidade começou a voltar". Quando finalmente as ruas foram retomadas, "as pessoas andavam dando graças a Deus por sua libertação".

O que poderia ser mais dramático do que um retrato de uma peste em andamento, quando as tensões e emoções são intensificadas e os instintos de sobrevivência surgem? A narrativa pandêmica é natural para romancistas realistas como Defoe e, mais tarde, Albert Camus.

A Peste, de Camus, em que a cidade de Oran, na Argélia, fica fechada por meses enquanto uma doença dizima seu povo (como de fato aconteceu em Oran no século 19), é um livro também repleto de paralelos com a crise de hoje. Os líderes locais relutam a princípio em reconhecer os sinais precoces que vêm dos ratos morrendo pela doença. "Os pais de nossa cidade estão cientes de que os corpos em decomposição desses roedores constituem um grave perigo para a população?", pergunta um colunista no jornal local. O narrador do livro, Dr. Bernard Rieux, reflete o heroísmo silencioso dos trabalhadores médicos. "Não faço ideia de o que me espera ou do que acontecerá quando tudo acabar. No momento eu sei disso: há pessoas doentes e elas precisam de cura", diz ele. No final, há a lição aprendida pelos sobreviventes da peste: "Eles sabiam agora que, se há uma coisa que sempre se pode desejar e, às vezes, alcançar, é o amor humano".

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A gripe espanhola de 1918 reformulou o mundo, levando à morte de 50 milhões de pessoas, após 10 milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial. Ironicamente, o dramático impacto global da gripe foi ofuscado pelos eventos ainda mais dramáticos da guerra, que inspiraram inúmeros romances. Enquanto as pessoas praticam agora o 'distanciamento social' e as comunidades ao redor do mundo se retêm, a descrição de Katherine Anne Porter da devastação criada pela gripe espanhola em seu romance Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro, de 1939, soa familiar: "É terrível... Todos os teatros e quase todas as lojas e restaurantes estão fechados, e as ruas estão cheias de funerais o dia todo e ambulâncias soam a noite toda", diz o amigo da heroína Miranda, Adam, logo após ela ser diagnosticada com a influenza.

Porter retrata a febre e os tratamentos de Miranda, e semanas de doença e recuperação, até o despertar para um novo mundo remodelado pelas perdas da gripe e da guerra.

Porter quase morreu da gripe. "Eu mudei de uma forma estranha", ela disse à revista literária The Paris Review em uma entrevista de 1963. "Levei muito tempo para sair e viver no mundo novamente. Eu estava realmente 'alienada' no sentido puro."

O Ano do Dilúvio, de Margaret Atwood, mostra-nos um mundo pós-pandêmico com humanos quase extintos
O Ano do Dilúvio, de Margaret Atwood, mostra-nos um mundo pós-pandêmico com humanos quase extintos
Foto: Alamy / BBC News Brasil

Bastante plausível

As epidemias do século 21 - a síndrome respiratória aguda grave (Sars, na sigla em inglês), em 2002, a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers, em inglês), em 2012 e o ebola, em 2014 - inspiraram romances sobre desolação e colapso pós-peste, cidades desertas e paisagens devastadas.

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O Ano do Dilúvio (2009), de Margaret Atwood, mostra-nos um mundo pós-pandêmico com humanos quase extintos, após a maioria da população ter sido exterminada 25 anos antes pelo 'Dilúvio sem Água', uma peste virulenta que "viajava pelo ar como se tivesse asas, queimando cidades como fogo".

Atwood captura o extremo isolamento sentido pelos poucos sobreviventes. Toby, uma jardineira, olha o horizonte do jardim da cobertura de um spa deserto. "Deve haver mais alguém ... ela não pode ser a única no planeta. Deve haver outros. Mas amigos ou inimigos? Se ela vir um, como vai saber?". Ren, que foi dançarina de trapézio e "uma das mais limpas entre as sujas da cidade" está viva porque estava em quarentena por uma possível doença transmitida por um cliente. Ela escreve seu nome repetidamente. "Você pode esquecer quem você é se estiver sozinho demais", diz.

Por meio de flashbacks, Atwood explica como o equilíbrio entre os mundos natural e humano foi destruído pela bioengenharia patrocinada por grandes empresas e como ativistas como Toby reagiram. Sempre atenta aos problemas que tecnologia pode trazer, Atwood baseia seu trabalho em premissas plausíveis, tornando o Ano do Dilúvio terrivelmente presciente.

As vertentes narrativas do romance Estação Onze, de Emily St John Mandel, de 2014, ocorrem antes, durante e depois de uma gripe ferozmente contagiosa
Foto: Alamy / BBC News Brasil

O que torna a ficção pandêmica tão envolvente é que os humanos se unem na luta contra um inimigo que não é um inimigo humano. Não existem 'mocinhos' ou 'bandidos'; a situação é mais sutil. Cada personagem tem uma chance igual de sobreviver ou não. A variedade de respostas de cada personagem às circunstâncias terríveis torna a história interessante para quem escreve - e para quem lê.

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Severance (A Separação, em tradução livre - livro indisponível no Brasil), de Ling Ma (2018), que o autor descreveu como um "romance apocalíptico de escritório" com uma história de imigração, é narrada por Candace Chen, uma moça que trabalha em uma empresa de publicação da Bíblia e tem seu próprio blog. Ela é uma das nove sobreviventes que fogem da cidade de Nova York durante a pandemia fictícia da febre de Shen em 2011. Ma descreve a cidade depois que "a infraestrutura ... entrou em colapso, a internet caiu em um buraco, a rede elétrica foi fechada".

Candace se junta a um grupo numa viagem em direção a um shopping em um subúrbio de Chicago, onde o grupo planeja se estabelecer. Eles viajam por uma paisagem habitada pelos "febris", que são "criaturas de hábitos, imitando velhas rotinas e gestos" até morrerem. Os sobreviventes são imunes aleatoriamente? Ou "selecionados" pela orientação divina? Candace logo descobre que em troca da segurança de estar em grupo precisa demonstrar uma estrita lealdade às regras religiosas estabelecidas pelo líder do grupo Bob, um ex-técnico de TI autoritário. É apenas uma questão de tempo até que ela se rebele.

Nossa própria situação atual é, obviamente, nem de longe tão extrema quanto a prevista em Severance. Ling Ma explora o pior cenário que, felizmente, não estamos enfrentando. Em seu romance, ela analisa o que acontece em seu mundo imaginário após a pandemia desaparecer. Depois do pior, quem está encarregado de reconstruir uma comunidade, uma cultura? Entre um grupo aleatório de sobreviventes, o romance pergunta: quem decide quem tem poder? Quem define as diretrizes para a prática religiosa? Como os indivíduos retêm poder de agência?

As vertentes narrativas do romance Estação Onze, de Emily St John Mandel, de 2014, ocorrem antes, durante e depois de uma gripe ferozmente contagiosa originária da República da Geórgia "explodir como uma bomba de nêutrons na superfície da terra", destruindo 99% da população da população global. A pandemia começa na noite em que um ator que interpreta o rei Lear, personagem de Shakespeare, sofre um ataque cardíaco no palco. Sua esposa é autora de histórias em quadrinhos de ficção científica ambientadas em um planeta chamado Estação Onze. O livro tem ecos dos Contos de Canterbury, clássico da literatura inglesa, escrito por Chaucer, o prototípico e irreverente ciclo de histórias do século 14, que tem como pano de fundo a peste negra.

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Quem e o que determina a arte, pergunta Mandel? A cultura de celebridades importa? Como vamos reconstruir as coisas depois que o vírus invisível nos sitiar? Como a arte e a cultura mudarão? Sem dúvida, existem romances sobre nossas circunstâncias atuais em andamento. Como os contadores de histórias nos próximos anos retratarão essa pandemia? Como eles irão narrar a onda de espírito solidário, os inúmeros heróis entre nós? Essas são questões a serem ponderadas à medida que aumentamos o tempo de leitura e preparamos o surgimento do novo mundo.

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