O relatório da CPI da Covid no Senado está previsto para ser entregue nesta quarta-feira (20/10). É o resultado de mais de seis meses de trabalho, centenas de horas de depoimentos e milhares de documentos que tenta esclarecer a resposta do governo brasileiro à epidemia de Covid-19 que já matou mais de 600 mil pessoas no Brasil. Mas mesmo antes de ser entregue, o documento já vem causado polêmica.
No cerne das discussões estão divergências no grupo majoritário da CPI, conhecido como "G7", formado por parlamentares independentes e de oposição ao governo: Alessandro Vieira (Cidadania-SE), Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Omar Aziz (PSD-AM), Eduardo Braga (MDB-AM), Otto Alencar (PSD-BA) e Humberto Costa (PT-PE).
O relator da comissão, Renan Calheiros, elaborou um relatório preliminar com 1.178 páginas que já foi entregue aos integrantes do G7. O documento ainda não é oficial, mas é tido como a "espinha dorsal" do documento que deverá ser publicado hoje.
Ele prevê o indiciamento de 71 pessoas e duas empresas. Entre os indiciamentos sugeridos por Renan estão o do presidente Jair Bolsonaro, do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o ex-secretário executivo da pasta Élcio Franco, além de ministros, empresários e outros políticos. Bolsonaro é apontado como responsável por 11 crimes, entre eles homicídio qualificado, genocídio e crimes contra a humanidade. E é com base nessa versão preliminar, à qual a BBC News Brasil teve acesso, que as divergências entre os senadores do grupo surgiram.
Apesar do "racha", a leitura e publicação do relatório oficial da CPI está mantida para a manhã desta quarta-feira. A expectativa é de que os parlamentares consigam encontrar um "meio termo" que não comprometa a votação do documento pela comissão.
Há quatro pontos principais de discordância no relatório. Confira:
1) Foco
Uma das principais críticas ao relatório preliminar de Renan Calheiros é em relação ao tamanho. Uma das versões do documento tem 1.178 páginas e indicia 71 pessoas. A reclamação é de que o documento seria muito amplo, abordando fatos e personagens tidos como "tangenciais", o que enfraqueceria possibilidade de responsabilização de figuras centrais como Bolsonaro.
"Acho que o Renan cometeu um erro de como montar uma investigação e é natural porque ele não conhece nada desse ramo. Ele expandiu demais o leque e está misturando os peixes grandes com peixes e pequenos ou figuras tangenciais", afirmou o senador Alessandro Vieira em entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na segunda-feira (18/10).
O parlamentar é autor de um relatório alternativo da CPI que já foi entregue à comissão que, diferentemente do documento elaborado por Renan, propõe o indiciamento de apenas 18 pessoas. Na sua proposta, também está previsto o indiciamento de Jair Bolsonaro.
2) Dúvida sobre homicídios
Os senadores também divergem sobre a proposta feita por Renan de indiciar Jair Bolsonaro pelo crime de homicídio qualificado, que é aquela modalidade em que o crime é cometido por um motivo específico ou com o emprego de algum meio cruel.
"A opção por não adquirir vacinas nos meses de julho de 2020 a, pelo menos, janeiro de 2021, sem nenhum embasamento técnico-científico, e na contramão de todas as recomendações das autoridades sanitárias internacionais, acabou tirando a vida de milhares de brasileiros que certamente fariam uso do imunizante, pois no Brasil houve recorde de adesão à vacina", diz um trecho do relatório preliminar de Renan Calheiros.
Para senadores como Alessandro Vieira, porém, haveria problemas técnicos que impedem o indiciamento de Bolsonaro por homicídio.
"As imputações de homicídio enfrentam alguns problemas técnicos. Você teria um homicídio que não tem uma vítima específica e isso não me parece tecnicamente muito sustentável", diz o parlamentar.
3) Bolsonaro cometeu genocídio ou não?
A proposta feita por Renan de indiciar de Bolsonaro pelo crime de genocídio contra os povos indígenas também causou desconforto entre os demais senadores.
"Todo um conjunto de agressões, negligências e atos que deixam os indígenas mais vulneráveis à pandemia convergem para a ocorrência do crime de genocídio […] Assim, como já dito, o impacto da covid-19 sobre os povos originários foi grave e desproporcional, situação que exige a responsabilização dos respectivos culpados", diz um trecho do documento preliminar elaborado pelo relator.
Mas apesar da comoção em torno do assunto, especialistas questionam se seria tecnicamente possível enquadrar Bolsonaro como um genocida uma vez que seria necessário provar que suas ações tiveram dolo (intenção) de dizimar uma determinada etnia.
Além disso, parlamentares como o presidente da comissão, Omar Aziz, e o senador Alessandro Vieira, discordam da tese defendida por Renan.
"Alguém sabe onde teve genocídio de índios nessa pandemia? Eu não vi nenhuma matéria sobre isso, não tenho conhecimento, não há nenhuma denúncia. Então como eu vou criar uma narrativa sobre uma denúncia que eu não tenho conhecimento? Estou aqui afirmando para você que o meu Estado, que é o Estado que tem mais etnias indígenas, que tem a maior quantidade de índios, todos os índios, sem exceção, eles tiveram duas doses para cada índio", disse Omar Aziz em entrevista concedida à emissora de TV Globo News na segunda-feira (18/10).
Alessandro Vieira também discorda de Renan nesse ponto.
"Temos (discordância) na questão do genocídio, como eu não consigo encontrar uma configuração tão clara no tocante aos povos indígenas, no sentido de impacto e de medidas feitas e direcionadas pra eles" disse o parlamentar em entrevista ao programa Roda Viva, na segunda-feira (18/10).
4) Indiciamento dos filhos de Bolsonaro
O quarto ponto de atrito entre os senadores do G7 é sobre a possibilidade de indiciar os filhos mais velhos de Jair Bolsonaro: o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). O relatório de Renan propõe indiciar Flávio por advocacia administrativa e por improbidade administrativa.
Os parlamentares contrários à ideia argumentam, reservadamente, que não haveria provas suficientes para propor o indiciamento do trio e que a medida poderia ser entendida como mera retaliação aos irmãos Bolsonaro. O caso seria especificamente complexo envolvendo Flávio Bolsonaro, com quem Renan trocou ofensas em uma sessão da CPI.