Como diretor do Instituto Butantan desde 2017, Dimas Covas sempre precisou aliar o conhecimento técnico e científico com as particularidades do mundo político que, na visão dele, não parecem seguir uma lógica.
E essa necessidade se ampliou numa escala inimaginável durante a pandemia de covid-19: a corrida por vacinas capazes de frear o coronavírus exigiu muito jogo de cintura e garantiu fortes emoções entre o final de 2020 e o início de 2021.
Uma das personagens que mais ganharam os holofotes nesta história foi a CoronaVac, imunizante desenvolvido pela farmacêutica chinesa Sinovac e testada no Brasil pelo Instituto Butantan, com a coordenação de Covas e sua equipe.
Após passar por todas as etapas de pesquisa clínica, a vacina foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro de 2021 e hoje responde por mais de 70% de todas as doses que foram aplicadas até o momento na campanha brasileira contra a covid-19.
Mas o atraso na entrega de novos lotes de matéria-prima deve paralisar completamente a produção até amanhã (14/05): o Instituto Butantan está aguardando a chegada de 10 mil litros do insumo farmacêutico ativo (IFA), que está na China.
Em falas recentes, o governador de São Paulo, João Doria, atribui essa demora na liberação do produto às constantes falas do presidente Jair Bolsonaro, que faz acusações infundadas sobre a origem do coronavírus e o papel do país asiático nisso.
Covas, que é especialista em hematologia e professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, concedeu uma entrevista exclusiva à BBC News Brasil um dia antes das primeiras notícias sobre a paralisação da produção no Butantan e avaliou que o país ainda demorará alguns meses para conseguir avançar na proteção dos brasileiros.
O especialista acredita que "até julho, enfrentaremos muitas dificuldades", causadas pela falta de insumos para a produção de doses.
A situação pode até melhorar a partir do último trimestre de 2021, quando as fábricas nacionais terão mais material para trabalhar e os fornecedores externos, como Pfizer e Johnson & Johnson, prometem entregar lotes maiores de suas vacinas.
Ainda na visão de Covas, isso se deve ao fato de o Brasil ter iniciado seu planejamento "muito tardiamente" e com "ações muitos tímidas".
"Se as primeiras ofertas que nos foram feitas tivessem sido levadas em conta, em dezembro de 2020 já poderíamos ter iniciado a vacinação no país. No entanto, isso não ocorreu", lembra.
O diretor do Butantan também confirma a dificuldade em lidar com os chineses após as declarações recentes do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e do ministro da Economia, Paulo Guedes, que fizeram acusações sobre a suposta origem do vírus no país asiático.
"Nós que estamos na ponta, lidando diretamente com eles, enfrentamos muitas dificuldades. Em termos práticos, um documento que poderia ser assinado e autorizado em questão de dez ou quinze dias, que seria um tempo aceitável, demora muito mais e passa por todo um problema burocrático. Nós sentimos na pele essa dificuldade de trazer os insumos. Enquanto isso, outros países que também usam a CoronaVac, como é o caso do Chile, não enfrentam esses mesmos problemas", compara.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Nos últimos dias, tivemos novidades sobre uma eventual quebra de patentes da vacina contra a covid-19. Os Estados Unidos mudaram seu posicionamento sobre o tema e há um projeto em discussão sobre o mesmo tema no Senado Federal. Como o senhor avalia essa questão?
Dimas Covas - Em primeiro lugar, o objetivo maior de uma possível quebra de patentes seria aumentar a disponibilidade de vacinas no mundo. Só que uma medida dessas não é uma solução que contribui nesse sentido. Será que a quebra de patentes aumentaria a quantidade de vacinas para o Brasil? A minha resposta é não.
Mesmo se o Brasil tivesse acesso a todas as patentes das vacinas já autorizadas, isso não mudaria em nada o cenário atual. Nosso país não tem uma base industrial de biotecnologia capaz de produzir essas vacinas mais modernas. Atualmente, os dois únicos produtores de imunizantes para uso humano no Brasil são instituições públicas: o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz). Nós até temos fábricas para vacinas veterinárias, mas não é fácil convertê-las para a produção de doses para seres humanos.
Então, mesmo que tivéssemos todas as patentes disponíveis, nas nossas mãos, isso não resolveria o nosso problema no curto e no médio prazo. Então a quebra de patentes não é uma solução. Mas por que então temos países que estão defendendo essa medida na Organização Mundial do Comércio? Esses locais têm uma boa capacidade produtiva, como é o caso da Índia e possivelmente da África do Sul. Mas a maioria dos países tem uma situação parecida ao Brasil, então a disponibilidade de patentes não vai significar acréscimo nenhum no quantitativo de doses.
O segundo ponto é que toda vez que você quebra uma patente, você está falando de uma vacina específica. Mas as detentoras desses direitos são empresas multinacionais, que possuem uma série de outros insumos, substâncias e medicamentos. A quebra, então, faz com que essas empresas se sintam prejudicadas em relação à propriedade intelectual que construíram. Elas podem então retaliar os governos por meio de seus outros produtos.
Essas companhias, por exemplo, podem dificultar o acesso dos países com histórico de quebrar patentes ao mercado farmacêutico. Elas podem pensar: por que vou trazer esses medicamentos para esse lugar, se eles tem essa fama de piratear nossos produtos? Toda vez que você quebra uma patente, cria-se um ambiente de desconfiança e retaliação.
O terceiro argumento contrário a essas tratativas é que o Brasil também é detentor de patentes. O Instituto Butantan, por exemplo, tem uma patente da vacina da dengue, que está em testes. Nós estamos inclusive transferindo essa tecnologia para outros países. Agora, será que alguém pode vir e quebrar nossa patente também?
Eu entendo que a propriedade intelectual é fundamental para o avanço da ciência. Quem faz investimentos nessa área precisa ter alguma garantia de retorno. Se você quebrar essa regra, ela pode nos prejudicar no médio e no longo prazo.
BBC News Brasil - Ainda nesse assunto, o Instituto Butantan tem uma série de parcerias e convênios com outros centros de pesquisa e também com farmacêuticas, tanto no sentido de colaboração científica quanto na disponibilização de insumos. O senhor acredita que uma quebra de patentes interferiria nesse intercâmbio?
Covas - Nós aqui do Instituto Butantan e a BioManguinhos, da Fiocruz, dependemos dessas empresas que produzem esses insumos. Além disso, nós temos uma série de parcerias no desenvolvimento de novas vacinas, que envolvem transferência de tecnologia. Esse mecanismo é utilizado há muito anos e é ótimo para nós.
Portanto, antes de quebrar as patentes nós podemos fazer acordo de transferência e incorporação de novas tecnologias. A partir daí, conseguimos implementar essa produção no nosso próprio país, sem ferir o princípio da propriedade intelectual. Se o Brasil quebrar alguma patente, pode ser que isso impacte negativamente as nossas parcerias.
BBC News Brasil - Enquanto a quebra de patentes é debatida como uma forma de aumentar a disponibilidade das vacinas, não podemos ignorar o problema da desigualdade na distribuição das doses. Alguns países estão com campanhas de imunização bem adiantadas, enquanto outros sequer conseguiram iniciar a proteção de seus habitantes. Na opinião do senhor, qual é o melhor caminho para resolver essa desigualdade?
Covas - Esse é um ponto importantíssimo. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que nenhum país vai ficar livre da pandemia enquanto a covid-19 não estiver controlada no mundo inteiro. A Europa e os Estados Unidos podem até estar vacinando num bom ritmo, com boa parte de suas populações imunizadas. Mas eles não estarão livres do problema enquanto os países da África e da América Latina não estiverem protegidos.
Não existe proteção local contra a pandemia, a não ser que você mantenha suas fronteiras fechadas indefinidamente. Para combater a pandemia, são necessárias ações globais, com atenção especial aos países mais pobres.
Agora vem a grande questão: o presidente dos Estados Unidos mudou sua posição e propôs a quebra das patentes, não? E por que ele não está mandando as doses excedentes da vacina para outros lugares do mundo? Os americanos não são, até o momento, um grande exportador da vacina, correto?
Veja, qual seria a melhor fórmula? Na minha visão, é a transferência de tecnologia, com o uso de fábricas com essa capacidade. Podemos aumentar muito a escala de doses disponíveis.
A conta já foi feita: precisamos de cinco a seis bilhões de doses das vacinas para que efetivamente comecemos a ter um controle maior sobre a pandemia. E nós estamos muito longe disso ainda.
BBC News Brasil - Sobre os Estados Unidos, uma discussão que fica cada vez mais forte é a questão do turismo vacinal. Várias cidades americanas estão oferecendo vantagens para quem for tomar as doses, incluindo turistas. Enquanto isso, a campanha nem foi iniciada em muitos países. Como o senhor vê esse tipo de incentivo que começa a se popularizar em alguns lugares?
Covas - É preciso ter em mente que a pandemia deixou de ser apenas uma questão de saúde pública mundial e se tornou uma competição geopolítica. Por que os países estão correndo para vacinar sua população? Porque assim eles poderão reabrir e voltar à normalidade o mais rápido possível.
Quer dizer, quando se fala em passaporte da vacina, no fundo, o objetivo é retomar o quanto antes as atividades econômicas. Ou seja: os países que chegarem primeiro à completa imunização terão vantagens sobre os demais.
Quando a gente analisa o mapa da corrida pelas vacinas, é possível notar claramente os Estados Unidos de um lado, a China do outro, a Europa do outro… No fundo, tem esse aspecto de competição por uma vantagem geopolítica.
Daqui a pouco, o grande ativo geopolítico será a exportação desses produtos para os países mais pobres. À medida que os mais ricos estiverem com a população vacinada, eles vão usar as doses excedentes como um ativo econômico e de influência.
Esse problema de saúde pública global precisava de uma coordenação mundial e um senso de solidariedade.
BBC News Brasil - Dentro desse contexto global, como o senhor analisa a situação brasileira e o avanço da vacinação em nosso país?
Covas - Primeiro, o Brasil iniciou o seu planejamento para a vacinação muito tardiamente. E, quando começamos, no segundo semestre do ano passado, as ações foram muito tímidas. O setor já estava em plena negociação em julho do ano passado. Quer dizer, se essas primeiras ofertas que nos foram feitas tivessem sido levadas em conta, em dezembro de 2020 já poderíamos ter iniciado a vacinação no país. No entanto, isso não ocorreu.
O Instituto Butantan só foi oficialmente contratado pelo Governo Federal para a produção da CoronaVac no dia 7 de janeiro de 2021. E mesmo que isso tenha ocorrido tardiamente, nós conseguimos entregar o maior volume de doses de vacina até agora. O outro fornecedor, a FioCruz, já tinha um acordo firmado em agosto do ano passado, e havia recebido vários adiantamentos. E até agora eles não entregaram os quantitativos prometidos e dificilmente vão conseguir cumprir as metas.
A vacinação não foi planejada adequadamente porque talvez não se acreditasse muito na eficácia das vacinas. Nós tivemos falas contrárias aos imunizantes, dia após dia, da maior autoridade da República. Isso não aconteceu em outros lugares do mundo. E isso veio em conjunto com a negação de todas as outras medidas de combate à pandemia.
Então, tudo isso se reflete hoje no que estamos vivendo. O mundo inteiro está em busca das vacinas. Aqui no Brasil, os estados e os municípios também querem e estão dispostos a comprar. O problema é que não há dose para todos. Temos uma questão de alta demanda e baixa oferta.
Então seguramente nós não vamos ter uma grande evolução nas campanhas de vacinação dos brasileiros antes do final do ano. Até julho, vamos enfrentar muitas dificuldades. O Instituto Butantan e a FioCruz estão com dificuldades para importar os insumos e todos os outros fornecedores só devem entregar doses no segundo semestre, principalmente no último trimestre de 2021.
Infelizmente, até setembro manteremos um ritmo lento de vacinação.
BBC News Brasil - Nos últimos dias, o senhor e o governador de São Paulo, João Dória (PSDB), têm falado sobre os insumos necessários para a produção da CoronaVac que estão retidos na China. Como o senhor mencionou, a disputa global pelas vacinas está dificultando o acesso às doses. Ao mesmo tempo, o presidente Jair Bolsonaro tem feito declarações sobre a origem do coronavírus que parecem incomodar os chineses. Isso tem atrapalhado esse relacionamento com os fornecedores?
Covas - Os reflexos dessas declarações do presidente podem ser vistos claramente na imprensa chinesa. Basta você acessar qualquer jornal de lá e, com a ajuda de um tradutor da internet, ver como as falas do presidente e do ministro da Economia, Paulo Guedes, repercutem. Obviamente isso afeta.
Nós que estamos na ponta, lidando diretamente com eles, enfrentamos muitas dificuldades. Em termos práticos, um documento que poderia ser assinado e autorizado em questão de dez ou quinze dias, que seria um tempo aceitável, demora muito mais e passa por todo um problema burocrático. Nós sentimos na pele essa dificuldade de trazer os insumos.
Enquanto isso, outros países que também usam a CoronaVac, como é o caso do Chile, não enfrentam esses mesmos problemas. Isso não é um juízo de valor, apenas uma constatação dos fatos.
BBC News Brasil - E como o Brasil poderia superar essa dependência internacional dos insumos?
Covas - O que nos falta é uma política industrial voltada para o setor da biotecnologia. O Brasil depende de produtos que vêm de outros países não só para fazer as vacinas, mas isso se repete em toda a área biofarmacêutica. Esse é um dos fatores que mais custam ao Ministério da Saúde.
Enquanto não tivermos uma política industrial voltada para essa área, com investimentos sérios, vamos continuar dependentes.
E veja você que essa não é a primeira epidemia que o Brasil enfrenta nos últimos anos. Nós tivemos recentemente o zika, que escancarou essa nossa fragilidade.
Quando eu falo de política de apoio à biotecnologia, não estou falando apenas em investimentos na ciência. Falo de apoio econômico para desenvolvimento da atividade industrial.
Uma fábrica de vacinas custa em torno de meio bilhão de reais. E você não consegue custear isso com as agências de fomento à pesquisa.
BBC News Brasil - E como estão as pesquisas da vacina ButanVac? Existe alguma perspectiva de início dos estudos clínicos?
Covas - As conversas com a Anvisa tem sido muito boas e nós tivemos avanços nas últimas semanas. Foram feitas algumas exigências e questões, que foram prontamente respondidas. Agora nós estamos aguardando um retorno enquanto evoluímos em detalhes do estudo clínico.
Nesse momento, nós estamos fazendo a contratação dos centros de pesquisa e o planejamento das pesquisas. Esperamos começar os estudos brevemente, até porque a vacina já começou a ser produzida. Até o momento, temos cerca de seis milhões de doses da ButanVac. Essa é uma produção inicial que já está em curso.
Eu acredito que a ButanVac, junto com a CoronaVac, podem dar contribuições substanciais para o combate da pandemia no Brasil ainda neste ano.
BBC News Brasil - O senhor acredita que a ButanVac estará disponível ainda em 2021?
Covas - A ButanVac significa autonomia para o Brasil. Com ela, nós não vamos depender de outros países para produzir a vacina. Sim, eu creio que temos todas as condições de utilizar esse imunizante ainda este ano. Obviamente que isso depende dos resultados dos estudos clínicos. Mas nós vamos fazê-los com muita rapidez e esperamos contar com a contribuição da Anvisa para agilizar o processo regulatório.
BBC News Brasil - O senhor assumiu a direção do Instituto Butantan em 2017. Em algum momento passou pela sua cabeça que enfrentaria um momento como esse que estamos vivendo?
Covas - O Instituto Butantan tem um programa interno de preparação para pandemias. Então nós fazemos parte de um movimento mundial e já estávamos nos preparando para uma crise sanitária que poderia acontecer. Nós achávamos que o vírus seria o influenza H7N9, que é um vírus gripal. Tudo indicava que esse seria o grande problema.
E nós todos fomos surpreendidos por esse outro vírus, o Sars-CoV-2. E, de forma geral, o mundo respondeu muito mal à pandemia.
Apesar de a gente saber como enfrentar uma pandemia e termos uma ciência extremamente desenvolvida, eu considero que o mundo combateu muito mal esse vírus.
E está aí o número elevadíssimo de óbitos para comprovar isso no mundo e no Brasil.
BBC News Brasil - O senhor tem uma formação e uma carreira na área médica. Como homem da medicina, como lidar com tantos fatores políticos envolvidos nas decisões sobre a pandemia?
Covas - Bom, todo cientista está acostumado a lidar com problemas, principalmente aqueles que são muito complexos. E não há dúvida nenhuma que o ambiente político é extremamente complexo. Mas, diferentemente da ciência, o ambiente político não segue lógica nenhuma.
Então é muito difícil, como professor, lidar com uma coisa que eu não entendo muito bem. Não conheço muito essas regras políticas, que não seguem uma lógica.
BBC News Brasil - O senhor vai depor à CPI da Pandemia no Senado Federal no dia 25 de maio. Qual a sua avaliação sobre a comissão e a sua participação nela?
Covas - O enfrentamento da pandemia no Brasil vai precisar ser passado a limpo em algum momento. Não dá pra escapar disso, seja pela CPI ou por algum outro mecanismo. Esse período que vivemos é dramático para a história do país.
A CPI talvez seja um caminho para passar a limpo a história dos muitos erros que foram cometidos. É óbvio que tiveram erros, muitos deles de forma intencional. E é preciso identificá-los e apontá-los. Até porque, se ficar provado que eles foram realmente intencionais, isso pode configurar um crime.
Eu acho que a CPI precisa lidar com fatos, sem misturar os interesses políticos. E os fatos são abundantes. Ao se limitar a análise desses fatos, será possível saber ao certo os erros e os desvios que aconteceram durante o combate à pandemia. Precisamos entender e incorporar isso para o bem do nosso próprio país.