Estudos sugerem imunidade mais cedo, mas aposta é perigosa

Essa imunidade coletiva, além de ser alcançada ao custo de mais mortes, não é homogênea entre municípios, bairros e comunidades

15 jul 2020 - 05h12
(atualizado às 07h36)

Dois estudos internacionais recentes levantam a hipótese de que a imunidade de rebanho possa ser alcançada no caso da covid-19 com um índice menor de infectados do que o inicialmente estimado, se considerados os diferentes níveis de interação social dentro de uma mesma população. Na prática, as pesquisas sugerem que o percentual de indivíduos infectados que faria o vírus ter dificuldades de continuar se propagando seria bem inferior aos 60% a 70% antes projetados por cientistas - um dos estudos aponta o índice de 43% e o outro, de 20%.

Movimentação de visitantes na reabertura do Parque do Ibirapuera, em São Paulo
Movimentação de visitantes na reabertura do Parque do Ibirapuera, em São Paulo
Foto: Tiago Queiroz / Estadão Conteúdo

Segundo especialistas em saúde ouvidos pelo Estadão, mesmo que, na teoria, tais modelos matemáticos façam sentido e a imunidade de rebanho possa ser alcançada com menos infectados, as lacunas que ainda existem sobre a doença nos impedem de saber se as cidades brasileiras já estão próximas desse cenário.

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E mais: mesmo que elas estejam, essa imunidade coletiva, além de ser alcançada ao custo de mais mortes, não é homogênea entre municípios, bairros e comunidades, o que impossibilita que possamos apostar nela para ficar livres da covid. As medidas de distanciamento social, portanto, continuam sendo fundamentais para frear o avanço do vírus até que tenhamos uma vacina - essa, sim, capaz de conferir imunidade coletiva confiável.

"Na imunidade de rebanho pela vacina, a gente tem certeza que a pessoa está protegida. Já a imunidade coletiva natural depende de vários outros fatores que não temos controle no caso da covid. Não sabemos se uma pessoa que teve a doença uma vez fica imune para o resto da vida, não temos certeza quais anticorpos conferem essa imunidade", destaca Natalia Pasternak, microbiologista, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência.

"Mesmo que estejamos com um índice maior de infectados imunes, não temos como medir isso com segurança, e o máximo que vamos conseguir é manter a doença mais controlada, mas sempre haverão surtos pontuais. Se a gente for usar isso para embasar políticas públicas, vai dar errado", completa a especialista.

Diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri reforça que as lacunas sobre a resposta imune do organismo à covid ainda são grandes e acrescenta que a imunidade coletiva natural depende de muitos outros fatores além do percentual de infectados.

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"Definir um percentual (de contaminados para a imunidade de rebanho) é temerário porque não depende apenas do número de infectados, mas das dinâmicas de interação, dos adensamentos, tipos de moradia. Em alguns locais, é muito mais difícil esgotar a cadeia de transmissão", afirma.

Mesmo nos casos de imunidade de rebanho por vacina, o percentual ideal de pessoas imunizadas para evitar novos surtos é de 90% a 95%, afirma o especialista.

Os próprios estudos que indicam que a imunidade de rebanho possa ser alcançada com menos infectados destacam as limitações desse tipo de projeção.

Ambas as pesquisas apostam na premissa de que, considerando que alguns indivíduos têm mais interação social do que outros e que há diferenças biológicas que os tornam menos ou mais suscetíveis, essa heterogeneidade da população deve ser levada em consideração para calcular a taxa de transmissão e, consequentemente, o percentual necessário para alcançarmos a imunidade de rebanho.

Em outras palavras, se pessoas com mais interação social estão mais sujeitas a se infectar antes, elas também podem ficar imunes antes e não serem super disseminadoras do vírus, o que permitiria que essa imunidade coletiva pudesse ser alcançada antes.

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O brasileiro Caetano Souto Maior, pesquisador do National Institutes of Health (NIH) dos Estados Unidos, é co-autor de um dos estudos e destaca que, embora os modelos considerem diferentes cenários, a evolução real da pandemia depende do comportamento das pessoas, das dinâmicas das cidades e das medidas adotadas pelos governos, dados que são impossíveis de prever com 100% de certeza.

"Mesmo considerando que os comportamentos são heterogêneos, eles são dinâmicos e variam de lugar para lugar. Quando a gente tem uma situação em que esse nível de interação fica mais homogêneo, como quando muitas pessoas de diferentes perfis ficam aglomeradas, como no transporte público, essas projeções podem mudar", afirma.

De acordo com os especialistas, principalmente nas grandes metrópoles, com intenso adensamento populacional e longos deslocamentos entre centro e periferia, sempre haverá população vulnerável e risco de novos surtos, mesmo que localizados e menores do que a primeira onda de infecções.

"Considerar essa heterogeneidade é importante para termos uma ideia melhor da trajetória da epidemia. Quanto mais a gente souber o que esperar, melhor poderemos nos preparar. Mas como há fatores que não podemos estimar, não podemos usar isso para falar que a situação não é grave nem que outras medidas devem ser relaxadas", destaca Souto Maior.

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"A gente não sabe se, no Brasil, onde os sistemas são menos preparados e têm menos infraestrutura para se adaptar a uma nova realidade, teremos ainda muita gente exposta ao vírus de forma homogênea", completa o pesquisador.

Para o biólogo Fernando Reinach, que tratou do assunto em uma coluna no Estadão no último sábado, a possibilidade de ter uma imunidade coletiva mais cedo, embora animadora, é um péssimo sinal de como a pandemia tem sido conduzida pelos governantes. "Claro que é melhor atingir uma imunidade de rebanho com 40% de infectados em vez de 60%. Mas ainda assim é uma tragédia. Resolver a pandemia com imunidade de rebanho indica que a gente resolveu por incompetência. É a pior solução possível porque há um monte de gente morrendo."

Para o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o custo humano de se atingir a imunidade de rebanho, mesmo que ela venha com percentual menor de infectados, é alto, principalmente para a população mais pobre. "São muitos mortos, pessoas com sequelas. As cidades da América Latina são imensas, com um núcleo principal onde está o trabalho e os trabalhadores morando muito longe. O transporte dessas pessoas é um dos maiores locais de transmissão. Elas serão as principais vítimas para que se chegue a essa imunidade de rebanho."

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