Quatro famílias moram no mesmo número da Rua Capricho Rústico, no Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo. Cada porta da casa retangular se abre para cômodos pequenos que acumulam funções - o quarto também é sala, por exemplo. Falta ventilação. No fundo do terreno, do outro lado do muro improvisado por telhas de amianto e uma porta de madeira, avançam as águas cinza-chumbo do córrego Lageado, que transborda na época das chuvas e invade o quintal. Nessas quatro famílias, cinco pessoas tiveram covid-19.
Famílias numerosas, com parentes que formam suas próprias famílias, mas permanecem no mesmo espaço, além de vizinhos que dividem o terreno, estão adoecendo juntos quando um morador pega o vírus. Em casas pequenas, com cômodos minúsculos, existe maior dificuldade de isolamento. Simplesmente não há espaço para se resguardar.
A dona de casa Eliana da Silva Souza Silveira, moradora da casa que acolhe quatro famílias, sentiu febre, dores no corpo, perda do olfato e do paladar. O agente comunitário de saúde recomendou isolamento, boa alimentação, hidratação e paracetamol. Estava no grupo de assintomáticos ou sintomáticos leves. Hoje, ela está bem - o Estadão a encontrou varrendo a calçada na manhã quente de uma quinta-feira. "Mas foi impossível se isolar dentro de casa", diz. Os outros quatro moradores pegaram a doença e conseguiram superá-la sem internação. Antes que cause estranhamento o fato de ninguém ter ido ao médico, vale um dado estatístico. Pesquisa da organização Viva Rio com cerca de mil famílias mostrou que 75,5% das pessoas com sintomas nas comunidades cariocas não procuraram atendimento médico.
Distante nove minutos da casa de Eliana, agora no bairro Jardim Senice, a família do aposentado Manoel Francisco também viveu uma luta contra o coronavírus. A mulher dele, Cleusa, foi a um hospital na Mooca assim que teve os sintomas. Como é quase impossível se isolar dentro de casa, Francisco se contaminou. A sobrinha, Railayne Silva, que mora no mesmo endereço, mas na casa debaixo, pegou. Com medicação, todos se recuperaram.
De acordo com o último boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo, a região do Itaim Paulista, onde moram Eliana e Francisco, registra 439 casos de covid-19. É a segunda maior incidência da zona leste, atrás de Sapopemba (559). O cenário se repete em relação aos óbitos: a região do Itaim registrou 122 mortes e Sapopemba, 205.
Do outro lado da cidade, em Paraisópolis, na zona sul, várias famílias adoecem juntas. A mãe de Jessica não conseguiu escapar. Após passar por três hospitais, Zita Pereira Silva morreu no dia 23 de abril. Jessica também se contaminou. Para evitar a transmissão na família, decidiu se isolar. A confeiteira de 27 anos foi uma das primeiras a ocupar uma das escolas transformadas em centro de acolhimento pela União dos Moradores e Comerciantes de Paraisópolis. "Fiquei 15 dias e mais ninguém se contaminou em casa."
Karina Oliveira Leitão, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), diz que não é a forma de morar que contribui para a disseminação da doença. "O problema é o vírus, não a forma de morar das classes populares. O risco de disseminação nas casas brasileiras é o mesmo", diz a pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAU. "Nas casas mais exíguas é difícil ter espaço para resguardar pessoas infectadas."
A especialista afirma que é preciso cuidado para não estigmatizar a moradia dos trabalhadores. "Essas formas de moradia são comuns nas metrópoles e advém da falta de atendimento do Estado e das adversidades para acesso ao mercado de habitação, ao solo urbano e a uma remuneração para arcar com os custos de moradia", diz.
Além da moradia
As dificuldades de moradia vão além da estreiteza dos cômodos, da pouca ventilação e da falta de luz do dia. As vielas e becos de comunidades como Jaraguá, Torresmo, Teresa, Nazaré e Senise, de volta ao Itaim Paulista, são como um novelo: a gente puxa um fio e vai descortinando carências que estão todas juntas e misturadas. Na beira do córrego Lageado, o pedreiro Josenildo Gomes da Silva teve de usar o auxílio emergencial do governo de R$ 600 para comprar cimento, pedra e areia. Tinha de reconstruir a parede de sua casa que caiu após chuva. Mora ao lado - ao lado mesmo - do córrego que recebe esgoto de casas.
"Para essas famílias não sobra dinheiro para o álcool em gel ou sabonete. Na maioria das vezes, não sobra nem para o arroz e o feijão", diz a líder comunitária Francisca Cleuda Soares da Silva, da Associação de Moradores do Jardim Jaraguá. As 1,2 mil famílias da região dependem das doações. O movimento foi iniciado pelos professores da rede municipal. Coletivos como Ação entre Amigos, Samba Jorge e Voz Periférica arrecadaram cerca de 600 cestas básicas em maio. O ideal seria 1,5 mil para atender todos.
As cestas são destinadas às famílias sem auxílio de governos. Uma parceria com o Serviço Social da Indústria (Sesi) permite a doação de cem marmitas por dia. "Mesmo com fome, as pessoas têm consciência. Muitas que pegaram a cesta falam que não precisam delas e indicam outras famílias que não receberam nada", diz a professora Melissa Micheletto, da Ação entre Amigos.
Francisca cadastra as famílias para as doações, orienta sobre medidas de prevenção, cobra a lição de casa das crianças que estão zanzando pelas ruas e faz o meio-campo com a subprefeitura. Ao lado do marido, Luiz Franco da Silva, é uma gestora informal e voluntária. A líder é cumprimentada a cada esquina. "É uma luta diária que ficou mais difícil durante a pandemia, mas estamos conseguindo."
Comida e higiene
Procurada, a Prefeitura de São Paulo afirmou que vem realizando diversas ações para auxiliar as populações vulneráveis. Em uma delas, foram distribuídas mais de 364 mil cestas básicas de alimentos e 84 mil kits de higiene e limpeza. A Secretaria Municipal de Habitação doou 100 mil máscaras e promoveu em maio as assinaturas dos contratos e o início das mudanças do Conjunto Habitacional Augusto Amaral, na zona norte. Foram 300 unidades no primeiro empreendimento entregue na pandemia.