Nas últimas semanas, começou a ser compartilhada em redes sociais e aplicativos de mensagens uma suposta notícia, que mistura informações verdadeiras e afirmações imprecisas ou falsas, para denunciar que as vacinas em desenvolvimento para covid-19 "usam células de fetos abortados, segundo especialistas".
De acordo com a publicação, as vacinas contra o coronavírus têm estas células em sua composição, "um fato já denunciado há anos por sites pró vida, com base em publicações científicas".
O texto remete a duas outras páginas, Life Site News e Precious Life, ao apontar que uma empresa está "usando células fetais abortadas, conhecidas como HEK-293", assim como pesquisadores da Universidade Oxford, no Reino Unido.
O objetivo seria alertar para supostos aspectos eticamente controversos no desenvolvimento destas vacinas, ao ligar esse tipo de trabalho à prática do aborto.
Mas trata-se de mais um episódio de uma campanha de desinformação contra a vacina para covid-19, que é quase tão duradoura quanto a própria pandemia e envolveu até agora Bill Gates, microchips para controle populacional e crianças no Senegal.
Muitas dessas supostas notícias são, na realidade, versões recauchutadas de informações falsas que já haviam sido divulgadas antes por pessoas contrárias a qualquer tipo de vacinação, diz João Henrique Rafael Junior, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto e idealizador do projeto União Pró-Vacina, que combate a desinformação sobre o tema.
"É possível encontrar referências à questão da vacina com células de fetos abortados que remontam a no mínimo cinco anos atrás, assim como menções a Bill Gates. Essas teorias vão sendo reaproveitadas e repaginadas sempre que há algum tema em evidência."
Vacinas contra covid-19 não têm células de fetos abortados
O virologista Aguinaldo Pinto, professor do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica que o desenvolvimento de vacinas realmente pode envolver o uso de culturas de células obtidas de tumores ou de fetos humanos que foram abortados.
Essas culturas são essenciais para esse tipo de trabalho, porque os pesquisadores precisam de células às quais um vírus possa infectar e se reproduzir. Assim, é possível obter exemplares suficientes para testar e produzir vacinas.
As vacinas normalmente usam cópias inativadas (mortas) ou atenuadas (alteradas para não serem infecciosas) de um vírus, que, uma vez injetado no corpo, leva o sistema imunológico a produzir anticorpos para combater a ameaça.
Desta forma, o organismo conseguirá combater um patógeno mais eficientemente quando for realmente infectado, impedindo que uma pessoa fique doente.
As culturas de células são usadas para isso desde meados do século passado e estiveram envolvidas na produção de algumas das principais vacinas que temos disponíveis hoje, como para rubéola, catapora e hepatite A.
"A primeira vacina desenvolvida assim foi a contra poliomielite. Antes, era preciso obter o vírus de pessoas ou injetá-lo em um animal, matá-lo, tirar um pedaço do corpo, purificar o material. Quando foi desenvolvida a técnica do cultivo de células em laboratório, foi uma grande revolução na virologia e na biologia de forma geral", diz Pinto.
Além de facilitar a produção de vacinas e permitir sua produção em massa, essas culturas têm outra vantagem. "Se todo mundo trabalha com as mesmas, as descobertas que fazemos têm uma uniformidade maior", afirma o pesquisador.
A cultura HEK-293, mencionada pela suposta notícia, foi criada no início dos anos 1970, a partir do rim de um feto abortado na Holanda.
Desde então, ela tem sido reproduzida em laboratório e vendida para pesquisadores de todo o mundo. "Eu tenho essa cultura no meu laboratório. Muita gente tem", diz Pinto.
"É importante deixar bem claro que isso foi feito pontualmente uma vez. Não é como se agora estivessem sendo feito abortos para produzir vacinas."
O mesmo criador da HEK-293, o biólogo molecular Alex van der Eb, desenvolveu outra cultura a partir de células da retina de um feto abortado em 1985, chamada PER.C6.
A revista Science aponta que, em ao menos cinco das mais de 140 candidatas a vacina contra a covid-19, essas duas culturas são usadas nas pesquisas.
Duas já estão na fase de estudos clínicos, entre elas a vacina de Oxford, que está em testes no Brasil. A vacina produzida pela empresa chinesa Sinovac, que também está sendo testada no país, é produzida a partir de uma cultura de células de rim de macaco.
Em quatro das vacinas que envolvem culturas originadas a partir de fetos, as células são usadas para fabricar adenovírus atenuados, que servem para transportar parte do genoma do coronavírus para dentro do organismo.
Os adenovírus infectam as células do nosso corpo e as fazem produzir proteínas do coronavírus, o que pesquisadores esperam ser capaz de gerar uma resposta imunológica.
A quinta vacina usa a cultura HEK-293 para produzir uma proteína que permite ao coronavírus infectar as células do organismo. Essa proteína seria o gatilho da produção de anticorpos.
Portanto, a afirmação feita pela suposta notícia de que as vacinas contra covid-19 têm celulas de fetos em sua composição é falsa. "As células são usadas para produzir os vírus. Depois, eles são separados das células, e só são usados os vírus na vacina", diz Pinto.
Mas esta não é a única mentira que andam contando por aí sobre as vacinas contra o novo coronavírus. Desde o início da pandemia, algumas notícias falsas sobre esse assunto já circularam.
Bill Gates não tem um plano de implantar microchips nas pessoas
Uma delas afirma que a pandemia faz parte de um plano para implantar microchips na população mundial e que o empresário Bill Gates, cofundador da Microsoft, estaria por trás dele. A Fundação Bill e Melinda Gates disse à BBC que isso é "falso".
O chefe do Partido Comunista russo fez referência a essa teoria ao dizer que os chamados "globalistas" apoiam "um implante secreto de chips em massa sob o pretexto de uma vacinação obrigatória contra o coronavírus".
Nos Estados Unidos, Roger Stone, ex-consultor do presidente Donald Trump, disse que Bill Gates e outros estavam usando o coronavírus para "colocar microchips nas pessoas para saber se elas foram testadas".
Os boatos surgiram em março, quando Gates disse em uma entrevista que, em algum momento, "teremos alguns certificados digitais" para mostrar quem se recuperou da covid-19, foi testado e recebeu a vacina. Ele não fez menção a microchips.
Isso levou a um artigo amplamente compartilhado, com o título: "Bill Gates usará implantes de microchip para combater o coronavírus".
O artigo faz referência a um estudo, financiado pela fundação de Gates, sobre uma tecnologia que pode armazenar os registros de vacinas de uma pessoa em uma tinta especial administrada ao mesmo tempo que a injeção.
No entanto, a tecnologia não é um microchip e, sim, mais parecida com uma tatuagem invisível, e não permitiria que as pessoas fossem rastreadas e as informações pessoais não seriam inseridas em um banco de dados, diz Ana Jaklenec, uma cientista envolvida no estudo.
Bill Gates não disse que 700 mil vão morrer com a vacina
O bilionário também foi alvo de outro rumor: ele teria admitido que a vacina contra a covid-19 matará 700 mil pessoas.
"Gates é um alvo frequentes destes rumores, porque, por meio de sua fundação, ele financia muitas instituições de saúde e científicas e, especificamente em relação à covid-19, ele deu uma palestra há alguns anos, falando havia um grande risco da humanidade enfrentar uma pandemia", diz Junior, da USP.
"Então, agora reinterpretam esse alerta como se tivesse sido fosse uma ameaça que agora está finalmente se cumprindo."
Essa notícia falsa deturpa uma fala do empresário, que, ao dar uma entrevista em abril de 2020 sobre a eficácia das vacinas em idosos, alertou sobre o risco de efeitos colaterais.
Ele expôs uma situação hipotética sobre o dano potencial destes efeitos, ao dizer: "Se tivermos 1 em 10 mil casos com efeitos colaterais... 700 mil pessoas que sofrerão com isso".
O número de 700 mil refere-se a uma declaração de Gates no início da entrevista, em referência às mais de 7 bilhões de doses que seriam necessárias para imunizar a população mundial.
Portanto, ele não afirma que centenas de milhares de pessoas morrerão por causa da vacina.
Crianças no Senegal não morreram ao receber a vacina para covid-19
Em abril, circulou nas redes sociais uma mensagem que afirmava que sete crianças de uma mesma família tinham morrido no Senegal após serem vacinadas contra o novo coronavírus.
O texto era acompanhado de um vídeo que mostra um tumulto ocorrido no país africano, no qual um vendedor de cosméticos foi preso após ter sido questionado se tinha a vacina e respondido em tom de brincadeira que sim.
A morte de crianças não é mencionada no clipe original, mas há versões em que foi acrescentada uma narração com essa afirmação.
O Ministério da Saúde do país africano disse ao portal G1 que essa história é falsa. Além disso, até hoje não existe uma vacina contra a doença.
Cientista não morreu ao tomar a vacina experimental
Outra notícia falsa afirmava que a cientista Elisa Granato, a primeira pessoa a receber uma dose da vacina de Oxford, em 23 de abril, teria morrido depois disso.
O repórter Fergus Walsh, da BBC, entrou em contato com a pesquisadora alguns dias depois para provar que isso era mentira.
"Hoje é domingo, dia 26, e estou bastante viva, tomando minha xícara de chá. Três dias depois do meu aniversário e três dias depois de eu ter tomado a vacina (ou estar no grupo de controle, não sei). Estou tendo um bom domingo, e espero que todo mundo no mundo também tenha", afirmou Granato.