Nas últimas semanas, no rastro das demissões dos ex-ministros Sérgio Moro, da Justiça e Segurança Pública, e de Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, ganharam intensidade no mercado os rumores sobre uma possível guinada na política econômica e a saída do ministro da Economia, Paulo Guedes, do governo.
Apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter reafirmado mais de uma vez que Guedes continua a ser o seu "Posto Ipiranga", as seguidas 'bolas nas costas' que ele vem levando do chefe acabam por alimentar a percepção de que seus dias no governo podem estar contados. O desembarque do sucessor de Mandetta, Nelson Teich, anunciado na sexta-feira, certamente não contribuirá para reduzir as incertezas sobre sua permanência no cargo.
Como costuma acontecer no futebol, quando dirigentes vêm a público dizer que os técnicos de seus clubes estão "prestigiados", mas eles acabam demitidos dias depois, há muita desconfiança na praça de que as declarações de Bolsonaro sobre a continuidade de seu 'casamento' com Guedes reflitam, de fato, o que esteja acontecendo nos bastidores.
Fritura
Na semana passada, o presidente voltou a colocá-lo numa saia justa, ao sugerir um recuo em seu compromisso de vetar a possibilidade de concessão de reajuste para certas categorias do funcionalismo em 2020 e 2021, embutida no pacote de auxílio a Estados e municípios aprovado pelo Congresso no início de maio.
Contrário à concessão do benefício, no momento em que o setor privado faz enormes sacrifícios para sobreviver à pandemia, Guedes pediu o veto depois de o próprio presidente ter liberado a base aliada para votar a favor das exclusões ao congelamento salarial, como revelou o Major Vítor Hugo (PSL-GO), líder do governo na Câmara.
Antes, Bolsonaro já havia criado um problemão para Guedes, ao dar o seu aval ao chamado Plano Pró-Brasil, também articulado à revelia de Guedes. O plano, destinado a alavancar a economia após a pandemia, previa inicialmente o uso de recursos públicos que seriam viabilizados com a flexibilização do teto dos gastos - dispositivo que limita as despesas do governo ao valor do ano anterior corrigido pela inflação.
Mas, apesar dos sinais de que passa por um processo de 'fritura', Guedes não parece convencido, segundo apurou o Estadão, de que chegou a hora de deixar o governo. Ao contrário de Moro, Mandetta e Teich, ele não faz de suas divergências com o presidente uma questão de vida ou morte e 'engole sapos' com certa resignação.
Bola dividida
Embora admita a amigos e auxiliares que ficará numa "situação difícil" caso Bolsonaro não vete os 'furos' no congelamento salarial dos servidores, é grande a probabilidade de Guedes 'agasalhar' mais este revés, se ele realmente se confirmar - o prazo para o presidente decidir sobre a questão vence no dia 27.
Como já afirmou várias vezes, Guedes até admite deixar o governo se sentir que não consegue ajudar o presidente e as pessoas que confiam nele. De acordo com as fontes ouvidas pelo Estadão, porém, ele não vê a sua saída como "algo próximo".
Na verdade, pelo que anda dizendo, sequer reconhece a "fragilidade" que lhe é atribuída por alguns analistas e continua a exaltar a confiança que acredita merecer de Bolsonaro. "Até hoje, sempre que houve uma bola dividida, o presidente esteve comigo", costuma afirmar a quem o questiona sobre um possível desgaste em sua relação com Bolsonaro.
Apesar das evidências em contrário, Guedes não atribui ao presidente as "facadas" que levou nos últimos tempos. Na visão do ministro, segundo relato de interlocutores próximos, ele se tornou alvo do chamado "fogo amigo", disparado de trincheiras erguidas na Esplanada dos Ministérios e no Congresso Nacional.
Centrão
A integrantes da equipe econômica que se abatem diante das adversidades, Guedes costuma dizer que já ouviu vários "nãos" de Bolsonaro, mas não desistiu de ir atrás de seus objetivos, inclusive em relação ao próprio congelamento de salários de servidores em casos de crise fiscal.
O dispositivo já estava previsto tanto na reforma administrativa preparada pela equipe econômica, que o presidente defenestrou no final do ano passado, como no chamado Pacto Federativo, que está em análise no Senado e ficou em stand by com a pandemia.
"Quem me conhece sabe que sou duro na queda", diz a seus assistentes quando leva um tombo. "Sou um caçador. Não desisto da presa até abatê-la. Mesmo no meio do maior fumacê, da maior brigaiada, não perco o rastro."
Nem a aliança de Bolsonaro com o Centrão, para reforçar sua base no Congresso, nem os riscos que ela pode representar para a sua agenda reformista parecem levar Guedes a questionar a sua permanência no governo. Como apurou o Estadão, ele entende, talvez ingenuamente, que o acordo terá características diferentes das passagens do Centrão pelo governo no passado.
Em sua percepção, de acordo com uma fonte que esteve com ele recentemente, a troca de apoio político por cargos não significa necessariamente uma porta aberta para a corrupção, se Bolsonaro "blindar" o comando dos ministérios e das grandes estatais. O acerto deverá se refletir na liberação de recursos para regiões de interesse de parlamentares do Centrão, por meio de emendas e solicitações feitas diretamente aos titulares das Pastas e das estatais.
Programa liberal
Guedes parece determinado a deixar um legado ao País, ao implementar o seu programa liberal, com o controle de gastos do governo, a implementação das reformas estruturantes, a privatização e a abertura econômica. Com isso, ele acredita que lançará as bases que permitirão o crescimento sustentável do País e não apenas mais um voo de galinha, como tem acontecido em diferentes oportunidades ao longo das últimas décadas.
Também ao contrário de Moro, Mandetta e Teich, Guedes não se mostra muito preocupado em manchar sua biografia ao permanecer no governo e sabe que nenhum outro presidente teria colocado um liberal como ele no comando da economia.
Enquanto muito dos que apoiaram Bolsonaro nas urnas e antigos colaboradores se afastaram dele, Guedes se mantém leal ao presidente. Sua reação a um pedido do governador de São Paulo, João Doria, para que ele - considerado um dos pilares do governo - deixasse o cargo, é um exemplo emblemático de que continua a ser um fiel escudeiro do "capitão".
"João, agradeço sua ligação, mas não sou eu que sustento o governo Bolsonaro. Quem sustenta o governo é o povo que elegeu o presidente. Ele tem um terço de apoio. O outro terço, que fica no meio do caminho, depois vai apoiá-lo", afirmou Guedes, de acordo com uma gravação da conversa que 'vazou' no final de abril. "João, o país vive um momento democrático que é barulhento, mas virtuoso."
Obsessão
Ele reage com indignação quando alguém fala sobre um possível processo de impeachment contra Bolsonaro no Congresso. Ainda que reconheça o papel relevante desempenhado pela mídia independente e profissional e defenda de forma enfática a liberdade de expressão, ele engrossa as críticas do presidente à imprensa. "A obsessão da mídia é pegar o Bolsonaro", costuma dizer ao comentar a questão.
Até no caso da manifestação em que se pedia uma intervenção militar e a volta do AI-5, realizada em 19 de abril, em Brasília, com a participação de Bolsonaro, Guedes fica ao lado do chefe, dizendo que ele nada falou contra a democracia no ato. Segundo um de seus auxiliares, ele comentou que havia só um cartaz perdido no meio do ato pedindo a volta do AI-5, mas as manchetes destacaram que foi uma manifestação contra a democracia apoiada por Bolsonaro.
Mesmo com tudo isso, nada garante que amanhã ou depois de amanhã Guedes não possa mudar de ideia e romper o seu casamento com Bolsonaro ou que o próprio presidente peça o divórcio. É sempre uma possibilidade, para qualquer um que esteja ocupando um cargo de confiança, especialmente no primeiro escalão, como mostram os casos do ex-ministro Nelson Teich, de Mandetta e de Moro.
Banho de mar
Quando questionado sobre a questão, Guedes lembra do caso do ex-ministro da Fazenda e do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, que passou por um processo semelhante de "fritura" no governo Figueiredo (1979-1985). Na época, diziam que Delfim Netto, então ministro da Fazenda, estava contra ele, que o presidente estava fechado com Delfim, que o Simonsen havia sido abandonado e que ele tinha de decidir se ficava ou não no governo.
Ao final, ele acabou deixando o ministério e no dia seguinte estava na praia de Ipanema, no Rio, onde morava, tomando um banho de mar, quando um jornalista lhe perguntou: "E agora, ministro, como é que ficam os problemas do Brasil?". Ele respondeu: "Os problemas não são mais meus, são do Brasil. Até ontem eu não dormia, os problemas eram meus. Hoje, eu dormi muito bem. Agora os problemas são seus". Por ora, porém, pelo que se pode observar, parece que o banho de mar de Guedes em Ipanema - ou no Leblon, onde ele mora - vai ficar para mais tarde.