Vinte e três dias após ser nomeado para coordenar o Programa Nacional de Imunizações (PNI), cargo estratégico do Ministério da Saúde, o médico pediatra Ricardo Queiroz Gurgel foi informado nesta quinta-feira, 28, que não vai mais assumir o posto. Defensor da vacinação em adolescentes e contrário ao tratamento com "kit covid", o médico disse ter ficado sabendo por um funcionário da pasta que seria dispensado, mas sem qualquer explicação do motivo. "Agora vou voltar para casa", afirmou ele em entrevista ao Estadão.
A nomeação do pediatra foi assinada pelo ministro Marcelo Queiroga e publicada no Diário Oficial da União do dia 6 de outubro. Gurgel, porém, nunca chegou a exercer o cargo efetivamente. Por três semanas, esperou o contato do ministério para saber quando poderia assumir. Sem resposta, decidiu pegar um avião em Sergipe, onde mora, e ir até Brasília bater na porta da pasta. "Eu vim a Brasília por minha conta, porque estava incomodado com essa situação e fui informado que não irei tomar posse", disse ele.
Instituído na década de 1970, o PNI organiza e implementa as ações de vacinação no País. Em meio à pandemia da covid, o programa está sem coordenação desde o início de julho, quando a enfermeira e epidemiologista Francieli Fantinato deixou o posto. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, no Senado, ela afirmou ter decidido sair por causa da "politização" que tomou conta da vacinação contra covid-19. "Estou desde 2019 na coordenação do PNI, venho trabalhando incansavelmente. Pelos últimos acontecimentos da politização do assunto em relação à vacinação, eu decidi seguir os meus planos pessoais", disse Fantinato, na ocasião.
Desde o ano passado, o presidente Jair Bolsonaro tem dado declarações desestimulando a vacinação contra covid, colocando em dúvida a eficácia dos imunizantes. Ele próprio disse que não pretende se vacinar.
Gurgel, que assumiria o cargo, é professor de pediatria e, no mesmo dia em que sua nomeação foi publicada, deu declarações que contrariam Bolsonaro. Em entrevistas, defendeu a vacinação de adolescentes, que chegou a ser suspensa no mês passado pelo Ministério da Saúde após pressão de bolsonaristas. Também afirmou ser contrário ao chamado "kit covid", composto por medicamentos ineficazes contra a doença, como cloroquina e ivermectina, que tem o uso incentivado pelo presidente.
Ao Estadão, o médico relatou ter sido recebido no Ministério da Saúde apenas por um coordenador de departamento. "Ele me comunicou que eu não tomaria posse", afirmou. "Não me disseram mais nada. Não teve justificativa."
Gurgel contou que agora espera poder voltar a trabalhar na Universidade de Sergipe, onde leciona. Para isso, aguarda que o ministério publique a exoneração. "Eu pedi que me fizesse esse documento, porque eu preciso assumir de volta (na universidade), né? Eu pedi a eles que me fizessem esse documento o mais rápido possível", contou. "Eu fui convidado, mas agora vou voltar para minha vida normal, sem problemas. Eu tenho o que fazer."
O médico disse ter se encontrado uma única vez com Queiroga, quando foi entrevistado para o cargo. Ele contou que não conhecia o ministro e não houve mais contato desde então. "Eu não tenho acesso ao ministro", disse.
A nomeação chegou a ser divulgada no site do Ministério da Saúde no dia 7 de outubro. "A partir de agora, Gurgel estará à frente de temas prioritários para o Ministério da Saúde, como a cobertura vacinal dos imunizantes previstos no Calendário Nacional de Vacinação e a continuidade da campanha contra a Covid-19, que já imunizou quase 94% da população adulta com a primeira dose", diz o texto, que ainda está no ar.
Em manifestação ao site, Gurgel chegou a planejar como seria o trabalho no PNI. "A prioridade será reforçar as coberturas vacinais dos calendários do PNI, principalmente das crianças, mas também dos adolescentes, grávidas e idosos. Precisamos colocar em níveis seguros, para que essas doenças não retornem. É claro que também temos muito trabalho relacionado à vacinação contra a Covid-19", afirmou à época.
O caso de Gurgel não é inédito no Ministério da Saúde. Anunciada em maio como chefe da Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, a médica Luana Araújo foi informada dez dias depois que sua nomeação não seria concretizada.
Luana é defensora da vacinação em massa e já declarou ser favorável a medidas restritivas e contra o "kit covid". Em uma entrevista, a médica afirmou que "todos os estudos sérios" demonstram a ineficácia da cloroquina e que a ivermectina é "fruto da arrogância brasileira" e "mal funciona para piolho".
Na época, Queiroga negou pressão do Planalto. Sem informar o motivo de Luana ter deixado o cargo, se limitou a dizer que a pasta buscaria por outro nome com "perfil profissional semelhante: técnico e baseado em evidências científicas".
Poucos dias depois, no entanto, durante audiência da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, o ministro disse que a doutora era uma "pessoa qualificada" e tinha as condições técnicas para exercer "qualquer função pública", mas não foi nomeada porque além de "validação da técnica", era necessário "validação política" para nomeação."Vivemos em um regime presidencialista", afirmou o ministro.
Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou sobre o caso de Gurgel.