Neurologistas temem aumento de AVCs por coronavírus

A expectativa dos médicos é que esse cenário deve se tornar mais evidente nas próximas semanas, quando a epidemia atingir o seu pico

28 abr 2020 - 05h10
(atualizado às 08h09)

Diante da percepção cada vez maior de que o coronavírus Sars-CoV-2 causa alterações neurológicas e pode provocar a formação de microcoágulos nos vasos sanguíneos, médicos que estão na linha de frente do combate à pandemia começam a temer um aumento de casos de AVC relacionados à covid-19. Alguns hospitais já estudam mudanças no protocolo desses pacientes para investigar se ele têm o vírus.

Médico com roupa de proteção aguarda em ambulância na região de Moscou
12/04/2020
REUTERS/Tatyana Makeyeva
Médico com roupa de proteção aguarda em ambulância na região de Moscou 12/04/2020 REUTERS/Tatyana Makeyeva
Foto: Reuters

A preocupação vem tomando corpo com o aumento de relatos feitos por médicos de outros países desses casos. Neste sábado, o jornal americano The Washington Post publicou uma reportagem em que profissionais do Hospital Mount Sinai Beth Israel, em Nova York, relatam um aumento de pacientes entre 30 e 40 anos saudáveis que tiveram AVC - nos quais depois se identificou a presença do coronavírus.

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Pesquisadores chineses já haviam publicado estudos observacionais - do tipo série de casos - com pacientes de covid-19 que tiveram AVC, e médicos espanhóis têm feito relatos semelhantes, mas ainda não submetidos a publicações científicas.

O Estado ouviu neurologistas de alguns hospitais de São Paulo e do Rio e identificou a ocorrência de pelo menos três situações parecidas, mas que ainda carecem de mais investigações. A expectativa dos médicos, porém, é que esse cenário deve se tornar mais evidente nas próximas semanas, quando a epidemia atingir o seu pico.

O neurologista Gabriel Freitas, pesquisador do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e da Universidade Federal Fluminense, afirma que teve um paciente que chegou ao hospital com AVC, sem outros sintomas, e depois com uma tomografia de tórax se percebeu que ele tinha a covid. Um outro caso, de um pequeno AVC, que ele atendeu em consultório, também depois foi testado como positivo para o coronavírus.

"Temos conversado muito com neurologistas da Espanha e lá isso foi muito nítido. No momento mais crítico da epidemia eles viram muita gente chegar com AVC e, quando se investigava, eles também tinham covid. O AVC era a primeira manifestação da doença. Também tiveram pacientes já internados com covid que tiveram o AVC depois", conta Freitas.

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O pesquisador comenta que os relatos de casos nos Estados Unidos também coincidem com o pico da epidemia no país, o que gera o alerta de que nas próximas duas semanas possamos ter um quadro parecido no Brasil.

Por causa disso, ele afirma que o protocolo de atendimento para esses pacientes está mudando ao menos em dois hospitais - o Quinta D'Or e o Copa D'Or -, e sendo discutida essa implantação em toda a Rede D'OR. "A recomendação agora para todo paciente que chega com AVC é que ele seja investigado para covid, com tomografia de tórax e teste - e seja tratado como tal até que se prove o contrário", diz.

Gisele Sampaio, coordenadora da Rede Brasil AVC e neurologista do Hospital Albert Einstein e da Escola Paulista de Medicina, afirma também ter recebido um caso de AVC em uma paciente de 56 anos que depois se mostrou ser também de covid-19. "Ela foi para o hospital com dor de cabeça forte, tinha uma queixa respiratória, de cansaço, e por isso fizemos tomografia de pulmão. Vimos o padrão compatível com covid, depois confirmado com teste de PCR. Imaginamos que tenha relação com a covid sim porque ela não tinha nenhum outro histórico importante para AVC", conta Gisele. A paciente acabou morrendo.

Segundo a médica, as sociedades brasileiras de Doença Cérebro-Vascular e de Neurointervenção estão elaborando um documento com recomendações para que os pacientes com AVC sejam investigados para covid.

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"Existe potencial muito grande de esses pacientes serem assintomáticos do ponto de visto respiratório, mas podem transmitir não só para outros pacientes como para os profissionais de saúde. Sociedades médicas dos EUA e da Europa fizeram essa recomendação e vamos fazer também: que todo paciente que chegue com AVC seja atendido como se fosse covid até se ter o resultado", afirma.

Distúrbios no processo de coagulação

A principal suspeita é que isso ocorra porque o coronavírus parece provocar distúrbios no processo de coagulação. Necropsias em vítimas da doença revelaram a presença de pequenos coágulos nos vasos sanguíneos de diversas partes do corpo. Já foram observadas também tromboses nos pulmões e a hipótese é que alguns desses trombos possam chegar ao cérebro.

O patologista Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do grupo que realiza as autópsias nos pacientes mortos no Hospital das Clínicas, afirma que em 18 corpos analisados, ele encontrou, por meio de tomografias, lesões cerebrais em dois. "São sinais sugestivos que podem ser de AVCs recentes, mas ainda não fizemos análise microscópicas do material coletado no cérebro", diz.

Além do problema de coagulação, há indicativos de que a covid também provoca outras alterações neurológicas. "Já há relatos na literatura médica de quadros de delírio, mudanças comportamentos, sangramentos, além do AVC", comenta Viviane Cordeiro Veiga, coordenadora de UTI da Beneficência Portuguesa de São Paulo. "São inúmeras situações sendo descritas, mas ainda são relatos iniciais", comenta.

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Ela afirma ainda não ter recebido nenhum paciente com AVC e covid-19, assim como o neurologista Eli Faria Evaristo, do Sírio, mas ambos dizem esperar ver isso quando a epidemia chegar ao pico.

"Ainda é uma hipótese que a covid seja a causa dos casos de AVC nos Estados Unidos, mas em várias análises de necropsia em todo o mundo tem sido observado que o vírus tem propriedade de induzir trombose no pulmão. É razoável admitir que essa ação pró-trombótica do covid possa causar trombose em outros órgãos. O Departamento de Cardiologia tem sugerido também aumento de infartos", afirma Evaristo.

Segundo o médico, ainda não houve mudança oficial no protocolo de atendimento do Sírio, mas os médicos estão atentos aos sintomas. "E como para AVC fazer uma tomografia na cabeça é obrigatório, não custa muito correr a máquina até o pulmão para ver se há comprometimento. Ainda não é protocolar, mas está aumentando."

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