Infectologista que atua na linha de frente em hospitais do Rio descreve cenário dramático. Prevendo até 6 mil mortes por covid-19 por dia no Brasil, ele defende lockdown e canalização de esforços para vacinação em massa.Em meio ao pior momento da pandemia de covid-19 no Brasil, com o sistema de saúde sobrecarregado e a vacinação caminhando a passos lentos, o país registrou nesta terça-feira (06/04) mais um recorde de mortes ligadas à doença: foram 4.195 em 24 horas.
O Brasil é atualmente líder mundial disparado em novas mortes diárias, e responde por cerca de 28% dos novos óbitos por covid-19 no mundo, segundo dados do site Our World in Data, vinculado à Universidade de Oxford. Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos.
Nesta terça, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou um boletim extraordinário do Observatório Covid-19 em que prevê que a pandemia permanecerá em níveis críticos ao longo do mês de abril. Segundo uma análise do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, após viver, em março, o mês mais mortal da pandemia, com 66 mil óbitos ligados à covid-19, o Brasil pode vir a registrar 100 mil mortes neste mês.
O infectologista David Sufiate trabalha na linha de frente em vários hospitais da capital fluminense. Em entrevista à DW, ele relata um quadro dramático. "Eu, como médico, infectologista, intensivista na linha de frente, fico muito desanimado. A gente fica muito triste de perceber que a prioridade do governo não é coletiva, a prioridade do governo é individual", afirma.
Sulfiate prevê mais dois ou três meses com mortalidade elevada no país, com até 5 mil ou 6 mil mortes por covid-19 por dia. Sobre a possibilidade de o sistema de saúde entrar em colapso, ele é categórico: "Vai colapsar não - vai continuar no colapso. Pois o colapso já chegou. Estamos nele."
DW: A pandemia está fora de controle, no Brasil?
David Sufiate: É difícil até definir controle dentro de um contexto de pandemia. O que é controle? Mas, de fato, há uma sobrecarga no sistema de saúde como um todo. Desde a rede privada até a rede pública - ambos os cenários são bem difíceis.
Na Fiocruz, estamos há um mês com carga máxima, ou, melhor, acima da carga máxima em alguns momentos. Atualmente, só entra [paciente novo após] o que a gente consegue dar alta ou, infelizmente, os óbitos. Nem dá nem para dizer que está pior, porque já está sobrecarregado há pelo menos três semanas.
Você percebe que o perfil dos pacientes está mudando, já que os mais idosos foram vacinados?
Sim, isso é bem notório em todas as esferas de cuidado. Na UTI que eu coordeno, na Fiocruz, a gente já, desde ontem, não tem mais pacientes com mais de 80 anos internados. Isso reflete claramente o papel da vacina na pandemia. Agora temos um cenário em que os mais jovens estão expostos, pois as políticas governamentais estimulam às pessoas a sair de casa, a se expor mais. Assim, ficam mais doentes.
Que faixa de idade é mais afetada atualmente?
Entre 40 e 60 anos talvez sejam as pessoas mais afetadas e mais internadas.
O perfil do vírus também mudou?
O que parece mais claro para a gente é que o vírus está mais transmissível. Na Fiocruz, a gente consegue fazer uma análise filogenética, e 90% dos atuais pacientes internados já tem a mutação P.1. Então, o vírus mudou e está mais transmissível. Se ele faz uma forma mais grave [da doença], honestamente isso é difícil de dizer. Tem alguns trabalhos pequenos que mostram que o vírus parece ser mais virulento, mas o que me parece olhando de dentro é que tem mais pessoas doentes. Então, estatisticamente vai ter mais pessoas em estado grave. Isso não necessariamente decorre de um vírus estar mais virulento. Isso é difícil de afirmar.
Mas as pessoas agora permanecem por mais tempo na UTI, certo?
É porque são pessoas mais novas. E pacientes mais jovens tem mais reserva funcional. Esse pessoal demora mais para entrar em falência orgânica múltipla, por exemplo. Essas pessoas duram mais, entre aspas. A internação acaba sendo mais prolongada, porque são pessoas mais jovens, que resistem mais.
No seu dia a dia na UTI, o que falta para os profissionais de saúde?
Onde eu trabalho, o que mais falta é pessoal especializado em terapia intensiva. Em termos de suprimento, em termos de aparelhagem, não falta, em termos cotidianos. Mas tem muito médico que não está acostumado a trabalhar em UTI, e isso faz uma diferença absurda. E isso se estende a outras áreas também, como fisioterapeuta, enfermeiro e tudo mais. Mão de obra especializada me parece ser uma carência ainda, um ano após o começo da pandemia.
E muitos trabalhadores de saúde estão cansados depois de todo esse tempo?
Muitos colegas largaram a medicina, muitos pararam de trabalhar em UTI por causa disso, não querem ver covid de jeito nenhum. Realmente, é bem dramático.
O que o governo federal poderia fazer por vocês?
Vacinar as pessoas, priorizar todas as verbas, todas as vontades políticas, e canalizar os esforços na vacinação em massa. É o que vai mudar a história desses 4.100 óbitos em um dia.
E o lockdown? O governo federal disse que não haverá. Mas um lockdown seria positivo?
Não há dúvida. Temos um exemplo aqui no Brasil, a cidade de Araraquara, que fez lockdown e está no segundo lockdown. E que agora está registrando zero mortes. A gente não quer que não internem pacientes com covid. A gente precisa que haja recursos suficientes. Porque a gente não pode ter 700 pessoas esperando uma vaga na UTI para internar. Porque tudo fica engarrafado, tudo fica acumulado, e nosso trabalho é afetado em cascata.
A vacinação não vai impedir que as pessoas peguem a doença. Mas a vacinação vai impedir que tantas pessoas ao mesmo tempo peguem a doença. E o lockdown faz com que as pessoas circulem menos. E isso já foi amplamente divulgado e amplamente difundido, e eu me recuso, em abril de 2021, já 14 meses depois do começo de tudo, a ter que ensinar que lockdown funciona. Não há discussão de que ele funciona, é uma ferramenta muito útil.
Mas a gente vai entrar em outra discussão: como é que o governo vai fomentar as pessoas para não passarem fome? É muito preocupante.
Mas você percebe um perfil diferente, com mais pessoas pobres pegando a doença do que pessoas de camadas mais bem abastadas?
Isso acontece com qualquer doença infecciosa. Quanto mais abastado, menor o impacto. Porque as pessoas ricas conseguem ficar em casa, têm recursos para isso. As pessoas pobres não, elas têm de trabalhar, têm de se movimentar de alguma maneira.
Vocês, na linha de frente, sentem uma falta de apoio por parte do governo federal?
Eu, como médico, infectologista, intensivista na linha de frente, fico muito desanimado. A gente fica muito triste de perceber que a prioridade do governo não é coletiva, a prioridade do governo é individual. O que nos parece é que o governo não está preocupado com a coletividade, com o coletivo, de priorizar o que deve ser prioridade. Muito desanimador.
Ter agora um médico no Ministério da Saúde não traz esperança?
Bom, mais esperança dá se esse médico puder trabalhar. A gente sabe que o impacto das relações políticas é maior do que a própria competência da pessoa no cargo. Espero que o atual ministro da Saúde tenha a liberdade para preconizar o que deve ser preconizado, e não ser mais uma ferramenta de políticas individualistas.
Há cientistas prevendo ainda um aumento de mortes diárias - você está otimista ou pessimista?
Eu acho que a gente ainda vai ter dois ou três meses de grande impacto na mortalidade, chegando sim a talvez 5 mil ou 6 mil mortes por dia.
E neste caso, tudo vai colapsar?
Vai colapsar não - vai continuar no colapso. Pois o colapso já chegou. Estamos nele.