Quando acabar o período de isolamento social e a pandemia de coronavírus der sinais de desaceleração, o artista plástico Bruno Freitas pretende reabrir seu ateliê na Vila Mariana, zona sul de São Paulo, com a exposição Quarentena.
São 40 retratos produzidos ao longo do período de confinamento pelo artista de 34 anos que já expôs na Irlanda e venceu dois prêmios da Associação Paulista de Belas Artes. As obras estão sendo criadas a partir de fotos enviadas por conhecidos e anônimos pelas redes sociais. A intenção de Bfrema - nome artístico - é conectar pessoas de alguma forma nesse momento de isolamento social e, quando tudo passar, propor reflexão.
O principal projeto da jornalista Cris Parziale quando a vida voltar ao normal é celebrar o aniversário do filho, Marco, que fez 10 anos em 12 de março. Não teve festa. Por enquanto, ele está aceitando bem o adiamento. Virou o jogo e a quarentena agora é motivação. "Quando acabar tudo isso, eu vou ter uma festa", diz o aluno do 5.º ano do Colégio Candelária, em Indaiatuba, interior de São Paulo.
Ele até "abriu mão" do presente. Os avós maternos deram R$ 500 para comprar o que quisesse. Com lojas fechadas e o aumento do consumo de refeições entregues em casa, deu o dinheiro para a mãe comprar "pão, carne ou Coca-Cola". Depois, será "reembolsado''.
Como ficou mais ou menos claro pelas entrelinhas, a questão proposta para o Bruno e a Cris foi: "O que você gostaria de fazer após a quarentena?" Esses e outros relatos comprovam que o isolamento esgarçou, mas não rompeu a capacidade de pensar a vida após a pandemia. "Nós saímos do piloto automático e paramos para pensar na vida. Por um lado, isso pode trazer desespero e ansiedade. Por outro lado, pode abrir horizontes", diz o filósofo Gerson de Moraes, professor da Universidade Mackenzie. "Precisamos absorver a ideia de que o mundo anterior não existe mais e tentar sair como pessoas melhores. Aí começam os projetos. A esperança nos conecta ao futuro. Hoje, nós estamos presos no tempo e no espaço, mas conseguimos sonhar com algo melhor", explica.
No caso da assistente social Sandra Farinazzo Maioli, seu projeto pessoal aponta para o futuro, mas também representa um acerto de contas com o passado. Em janeiro de 2019, ela sofreu um grave acidente de carro que resultou na morte de dois amigos. Uma das sequelas foi a necessidade de uma cirurgia de hérnia abdominal, que estava marcada para o dia 27 de março. Como todas as cirurgias eletivas no País foram adiadas, o procedimento não tem data para ocorrer. "Fazer essa cirurgia é a última etapa de um longo processo para voltar à vida normal", diz a profissional de um hospital psiquiátrico na cidade de Jandaia do Sul, no Paraná.
A exemplo do artista Bruno Freitas, o cantor Carlos Navas aposta na arte para seguir adiante. Intérprete independente há 24 anos, com dez discos gravados, Navas pretende intensificar os projetos infantis e educativos no segundo semestre. Um dos seus projetos de maior sucesso é o show Chico & Vinicius para Crianças, que já foi visto por mais de 300 mil pessoas. "A música será mais reconhecida como instrumento de autoconhecimento, reflexão e cidadania. Meu trabalho faz olhar para dentro. Acho que as pessoas estarão mais abertas para experiências desse tipo", diz.
Os planos para o segundo semestre também podem significar um ajuste de direção na própria vida. Em agosto passado, a enfermeira Luciana Fracarolli Garcia, de 39 anos, foi para o Canadá estudar inglês e trabalhar. Enquanto cursava as aulas na Thompson Rivers University, em Kamloops, província de British Columbia, tentava a validação do seu diploma brasileiro.
REPLANEJAMENTO
Três fatores fizeram com que ela mudasse seus planos: o atraso na documentação, a falta de adaptação à nova realidade e o fato de a mãe, dona Denise, ter ficado sozinha no Brasil - é viúva e tem 60 anos. "Fiquei pensando sobre quem faria as tarefas do cotidiano para ela, como ir ao supermercado ou acompanhá-la ao hospital, se isso fosse necessário, em época de quarentena."
Por isso, Luciana decidiu antecipar a volta ao Brasil. Seu plano principal agora é retomar a carreira por aqui. "Tomei a decisão certa, mesmo que São Paulo registre mais casos de coronavírus do que a região onde eu morava no Canadá", avalia.
"Nós saímos do piloto automático e paramos para pensar na vida. Por um lado, isso pode trazer desespero e ansiedade. Por outro lado, pode abrir horizontes."
RETOMADA VAI DEPENDER DO CONTROLE ATUAL
A retomada da vida normal após a pandemia será lenta, progressiva e diretamente relacionada às medidas de contenção tomadas atualmente. Quanto mais pessoas seguirem o isolamento social, menos infectados e doentes ocuparão os hospitais. Mas aquela "vida normal" não será como antes. Esse é o cenário do fim da pandemia projetado por epidemiologistas, infectologistas e virologistas consultados pelo Estado.
A fase exponencial de aumento de casos ainda deve durar alguns meses. O clínico e infectologista Paulo Olzon, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que, quando uma parte grande da população, em torno de 50%, estiver imunizada, ou seja, tiver contato com o vírus e criado anticorpos, a curva de casos deve começa a cair. A partir daí, a transmissão diminui e a doença regride.
Isso significa que não haverá um dia da virada, portanto. "Podemos ter casos de doentes nesta fase, mas aos poucos a imunidade da população deve ir aumentando, o que pode diminuir a transmissão. Deve-se levar em conta que pessoas recuperadas podem ser novamente infectadas", opina o virologista Paulo Eduardo Brandão, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP.
A médica sanitarista Ana Freitas Ribeiro, do Instituto de Infectologia do Hospital Emílio Ribas, afirma que a China observa número reduzido de casos de transmissão local após o fim das medidas de distanciamento social. "Isso pode estar relacionado às medidas de detecção de casos, isolamento dos doentes e quarentena dos contatos."
Os especialistas afirmam que os próximos meses serão marcados pela luta por vacina e tratamento. Um dos ensaios clínicos vem sendo desenvolvido pelo médico gaúcho André Kalil na Universidade de Nebraska. O infectologista de 53 anos conduz estudos sobre a droga remdesivir, que já apresentou efeitos contra doenças como a Sars, por exemplo, em animais e no ambiente laboratorial (in vitro). Mas o estudo foi planejado para três anos. "A ideia não é testar uma só droga, mas várias", diz Kalil, que trabalha nos Estados Unidos há 20 anos.
Nessa busca de soluções para o novo coronavírus, a luta contra outras doenças pode ser favorecida. São os casos da tuberculose, aids, raiva e leishmaniose. "Já passamos por isso em outras pandemias, como cólera, peste e influenza. A humanidade mudou e seguiu em frente", avalia Paulo Brandão.
Já o cirurgião de coluna Luiz Cláudio Lacerda Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina Santa Marcelina, direciona seu olhar para o lado emocional. "As pessoas vão demorar a perder o medo do abraço."
Veja também: