BRASÍLIA - O secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, Hélio Angotti Neto, do Ministério da Saúde, barrou diretrizes que contraindicam o uso do chamado "kit covid" no tratamento ambulatorial e hospitalar da doença e outras duas normas. Angotti é aliado do presidente Jair Bolsonaro, que incentiva o uso de medicamentos com ineficácia comprovada contra a covid-19, como hidroxicloroquina e azitromicina. Na prática, a decisão mantém o País sem uma recomendação oficial de como tratar pacientes de covid com quase dois anos de pandemia.
As diretrizes que barrariam o "kit covid" na rede pública foram elaboradas por um grupo de médicos convocados pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e aprovadas em dois turnos pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema de Saúde (Conitec). As normas que regulamentariam o tratamento hospitalar estavam engavetadas na secretaria de Angotti desde junho do ano passado. Já as diretrizes sobre os procedimentos ambulatoriais, desde dezembro.
A decisão de Angotti foi registrada em quatro portarias publicadas no Diário Oficial da União nesta sexta-feira, 21. Em todas, o secretário amparou sua decisão em uma nota técnica de 45 páginas assinada somente por ele. Agora, a decisão será encaminhada para Queiroga adotar "as devidas medidas que julgar cabíveis".
Angotti listou 28 motivos para barrar as diretrizes, apontando "diversas inadequações, fragilidades, riscos éticos e técnicos e inconsistências capazes de comprometer negativamente o processo e as recomendações". Dentre as motivações para a rejeição, estão "repetidos vazamentos de informações com intenso assédio da imprensa e de agentes políticos da Comissão Parlamentar Inquérito (CPI da Covid) sobre membros da Conitec", "necessidade de não se perder a oportunidade de salvar vidas", respeito à autonomia médica, e "possibilidade de falhas metodológicas". O secretário também citou "incerteza e incipiência do cenário científico diante de uma doença em grande parte desconhecida".
O vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Alexandre Naime Barbosa, integrou o grupo que elaborou as diretrizes sobre o tratamento ambulatorial contra a covid. O médico reagiu às justificativas do secretário do Ministério da Saúde e afirmou que a nota técnica é "um texto completamente ausente de argumentação científica". Para ele, o veto às diretrizes é uma questão político-ideológica e não técnico-científica.
"A questão da prescrição de drogas off-label na pandemia já caiu porque todas essas opções já foram estudadas de forma extenuante e não é nenhum tipo de falta de lacuna na ciência. Não falta informação, a gente já sabe que são ineficazes", disse ao Estadão.
"(A nota técnica) ainda fala um outro termo falacioso, que "o importante é salvar vidas". Todos nós queremos salvar vidas, mas de forma honesta, prescrevendo medicações que tenham comprovação de eficácia."
O professor da Universidade de São Paulo (USP) Carlos Carvalho coordenou todos os grupos que apresentaram diretrizes para a covid a pedido do ministério. Ele considerou a decisão de Angotti uma "arbitrariedade" e declarou que os médicos que elaboraram o tratamento foram aprovados pela pasta. "Não é que eu peguei dez amigos para fazer isso. Não entendo, para mim foi uma surpresa por que não foi aprovado", afirmou.
"Pretendo responder ponto a ponto os questionamentos que o Hélio Angotti levantou (na nota técnica). Pretendo que isso seja revisado para que não tenhamos um retardo maior ainda. Daqui a pouco vem outra pandemia, a gente vai estar discutindo outra pandemia e o Ministério não aprovando o tratamento da pandemia de covid até hoje", acrescentou.
Veja os motivos citados pelo secretário Hélio Angotti para barrar os procedimentos que contraindicavam o "kit covid" para tratar a doença:
- Incerteza e incipiência do cenário científico diante de uma doença em grande parte desconhecida;
- Presença de diversos medicamentos utilizados em caráter off-label durante a pandemia;
- Presença de medicamentos não incorporados nas Diretrizes Terapêuticas;
- Necessidade de não se perder a oportunidade de salvar vidas;
- Respeito à autonomia profissional conforme princípios e pareceres do Conselho Federal de Medicina e Declaração de Helsinque;
- Seleção restritiva de estudos destinados à tomada de decisões quanto ao grau de recomendação pelo Grupo Elaborador;
- Imprecisão da pergunta PICO e importante heterogeneidade de alguns estudos utilizados;
- Dubiedade de como as recomendações foram julgadas em termos de rigor por meio da metodologia GRADE;
- Ausência de recomendação efetiva de caráter positivo no caso das Diretrizes Ambulatoriais; desatualização das Diretrizes Hospitalares;
- Possível estímulo à incompreensão de conceitos elementares como significância estatística, significância clínica e existência de evidências clínicas;
- Possível viés de seleção de estudos e diretrizes previamente tecidas por outras instituições;
- Impossibilidade de auditar o material que subsidiou o processo decisório por parte de membros do plenário;
- Ausência de linha de cuidados com orientações de diagnóstico e conduta adequadas ao SUS;
- Análise de fármacos de forma isolada ou em combinação simples que não refletem a complexidade do cenário assistencial;
- Ausência de análise de tecnologias específicas teoricamente promissoras; ausência de ampla discussão do melhor método a ser utilizado;
- Assimetria no rigor científico dedicado a diferentes tecnologias;
- Alcance das competências da Conitec e do Ministério da Saúde;
- Alcance das atribuições do Conselho Federal de Medicina;
- Alcance das atribuições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária;
- Necessidade de atentar aos objetivos específicos dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas;
- Medidas instituídas pela SCTIE com o objetivo de promover a integridade que não foram implementadas;
- Potenciais conflitos de interesses declarados e não declarados;
- Repetidos vazamentos de informações com intenso assédio da imprensa e de agentes políticos da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre membros da Conitec;
- Fragilidade administrativa das Diretrizes frente ao cenário atual;
- Possibilidade de falhas metodológicas inadequadamente avaliadas;
- Necessidade de atentar a elementos de beneficência, não-maleficência, justiça, autonomia e responsabilidade pertinentes às ações de saúde pública da alta gestão do Ministério da Saúde diante do insuportável risco de perda da oportunidade de salvar vidas;
- Resultados das Consultas e Audiências Públicas das Diretrizes Terapêuticas;
- Falta de consenso no plenário da Conitec.