'Tratamento precoce': governo Bolsonaro gasta quase R$ 90 milhões com remédios ineficazes, mas ainda não pagou Butantan por vacinas

Governo federal adquiriu e distribuiu medicamentos sem eficácia comprovada. Ao mesmo tempo, pagamentos acordados com o Instituto Butantan ainda não foram feitos.

21 jan 2021 - 11h02
(atualizado às 11h07)
Bolsonaro disse ter usado cloroquina para se tratar da covid-19
Bolsonaro disse ter usado cloroquina para se tratar da covid-19
Foto: Reuters / BBC News Brasil

O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já gastou quase R$ 90 milhões com a compra de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da covid-19, como cloroquina, azitromicina e o Tamiflu. Ao mesmo tempo, ainda não pagou o Instituto Butantan, que entregou as primeiras doses de vacinas aplicadas no Brasil.

Desde o início da pandemia, tanto o presidente da República quanto o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello defenderam o chamado "tratamento precoce" para a Covid-19 — ou seja, o uso de medicamentos como os citados acima nas fases iniciais da doença. Os medicamentos, no entanto, se mostraram ineficazes em diversos estudos rigorosos realizados ao redor do mundo.

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Até agora, os gastos da União com cloroquina, hidroxicloroquina, Tamiflu, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida somam pelo menos R$ 89.597.985,50, segundo levantou a reportagem da BBC News Brasil por meio de fontes públicas.

Algumas das drogas, como o antiparasitário nitazoxanida, pareceram funcionar contra o vírus em testes in vitro, ou seja, em laboratório. Mais tarde, porém, novos estudos mostraram que as drogas não funcionam em seres humanos.

O mesmo aconteceu com a cloroquina: após testes iniciais, a Organização Mundial de Saúde (OMS) interrompeu a pesquisa com o produto em meados de 2020, depois que ela se mostrou ineficaz.

Apesar disso, o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército comprou uma tonelada do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) para a produção de cloroquina, em maio de 2020, por pouco mais de R$ 1,3 milhão.

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Naquele mês, o Ministério da Saúde lançou um protocolo para atendimento da covid-19 que recomendava o uso da cloroquina associada à azitromicina, aos primeiros sintomas da doença.

Além dos medicamentos, o governo federal também investiu em vacinas contra o SARS-CoV-2.

A aposta inicial do governo foi na chamada "vacina de Oxford", desenvolvida pela farmacêutica britânica AstraZeneca. A União também aderiu ao consórcio coordenado pelo OMS para a compra de imunizantes, chamado de Covax Facility.

Em dezembro de 2020, o Ministério da Saúde assinou um convênio com o Instituto Butantan, que é ligado ao governo do Estado de São Paulo, para investir na "aquisição dos equipamentos para o centro de produção multipropósito de vacinas" — o valor era de R$ 63,2 milhões, que no entanto ainda não foram pagos.

Além disso, o governo federal também comprará as doses da CoronaVac produzidas pelo Butantan.

Novamente, porém, o pagamento ainda não foi feito. Em nota à BBC News Brasil no começo da semana, o Ministério da Saúde informou que pagará ao Butantan depois que as 100 milhões de doses da vacina contratadas forem entregues.

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No domingo (17/01), Pazuello disse que o Ministério da Saúde fez "o desenvolvimento do parque fabril do Butantan para fazer a vacina". "Fizemos um contrato de convênio de mais de R$ 80 milhões. Isso em outubro (de 2020). Você sabia disso? Pois é", reclamou o ministro na entrevista aos jornalistas. A declaração é imprecisa, pois o investimento ainda não foi feito.

Ao longo de 2020, o governo federal pagou R$ 733.707.652,36 ao Instituto Butantan — mas o dinheiro foi para a compra de vacinas para outras doenças, e não faz parte da ação orçamentária criada para gastos relacionados à pandemia. A cifra foi levantada pela BBC News Brasil usando a ferramenta Siga Brasil, do Senado Federal.

Tratamento precoce não funciona, diz médico infectologista

Renato Grinbaum é médico infectologista e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e reitera que o "tratamento precoce" não tem eficácia comprovada e não deve ser adotado.

"O tratamento precoce não é eficaz, não tem eficácia comprovada. E por isso não é recomendado nem pela Organização Mundial de Saúde (OMS), nem pela Associação Médica Brasileira (AMB), nem pelas sociedades brasileiras de Infectologia (SBI) e Pneumologia e Tisiologia (SBPT)", diz o especialista.

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Bolsonaro defende uso da cloroquina, mesmo sem evidências científicas dos seus efeitos contra a covid-19
Foto: Reuters / BBC News Brasil

"Os estudos não mostram qualquer benefício, e nós observamos que, na prática, há muitos pacientes internados depois de se automedicarem com este chamado tratamento precoce, que deveria evitar essas internações", diz o médico. "Então nós vemos, muito claramente, que este tratamento não funciona", diz ele.

"Se fosse assim, em Manaus (AM) nós não estaríamos com este problema, porque muitas pessoas usam, e continuam precisando de internação da mesma forma", diz Grinbaum. O sistema de saúde colapsou na capital amazonense no começo de 2021.

"As autoridades deveriam direcionar seus gastos para três coisas. A primeira é aparelhar os hospitais, para evitar as cenas de caos que a gente viu. A segunda coisa é a vacina, que ela é realmente eficaz. E a terceira coisa são as ações educativas e de supervisão, para a prevenção da covid-19", diz.

"Supervisionar bares que estão abertos, fechar festas clandestinas, tudo isto é gasto público", diz o especialista.

Até esta quarta-feira (20), o novo coronavírus já tinha infectado mais de 8,6 milhões de brasileiros. E ao menos 212.831 pessoas no país perderam a vida para a doença, segundo os dados oficiais do Ministério da Saúde.

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Como o governo federal gastou o dinheiro

Até o momento, as compras da União de medicamentos para o "tratamento precoce" da Covid-19 somam ao menos R$ 89.597.985,50, segundo levantou a BBC News Brasil.

Este é o valor despendido com a compra de Tamiflu, azitromicina, ivermectina, cloroquina, hidroxicloroquina e nitazoxanida.

De todos os medicamentos, o maior gasto foi com o fosfato de oseltamivir — que é comercializado sob o nome de Tamiflu.

O governo federal gastou ao menos R$ 85.974.256,00 com o medicamento em 2020, segundo dados do próprio ministério. A maior compra foi feita ao laboratório Roche, dono da marca Tamiflu, por R$ 26,6 milhões em 20 de maio passado — também com dispensa de licitação.

No mesmo dia 20 de maio, o Ministério da Saúde divulgou um documento no qual recomendava o uso do Tamiflu nos estágios iniciais da doença, especialmente para pessoas no grupo de risco da Covid-19. A orientação era começar o tratamento até 48h depois do início dos sintomas.

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Com a cloroquina, a União contratou a compra de ao menos R$ 1.462.561,50. Deste total, R$ 940.961,50 foram desembolsados até o fim de 2020.

No caso do governo federal, foram duas compras principais, feitas pelo Comando do Exército por meio do Laboratório Químico Farmacêutico da força. As duas aquisições, de R$ 652 mil cada, foram feitas com dispensa de licitação nos dias 06 de maio e 20 de maio do ano passado.

As duas compras foram arrematadas por empresas que possuem nomes bastante parecidos: "Sul de Minas Ingredientes LTDA" e "Sulminas Suplementos e Nutrição LTDA". Ambas estão sediadas na pequena cidade de Campanha (MG) e pertencem ao mesmo dono, Marcelo Luis Mazzaro.

Ao todo, a União adquiriu uma tonelada do chamado insumo farmacêutico ativo (IFA) usado na produção da cloroquina. E os gastos totais são ainda maiores, pois além da matéria prima, também foram adquiridos alumínio para as cartelas do medicamento e outros insumos.

Além destes dois contratos principais, há outras 11 notas de empenho do Laboratório Químico Farmacêutico do Exército para compras menores de cloroquina com as empresas de Mazzaro. A princípio, não há qualquer irregularidade nestas compras.

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Com o antibiótico azitromicina, o governo federal gastou outros R$ 1.994.884,40. A maior compra foi feita pelo próprio Ministério da Saúde (R$ 1,1 milhão).

A segunda maior aquisição, de R$ 165,6 mil, foi feita pelo Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, onde o presidente da República costuma cuidar da própria saúde. O HFA também foi onde Eduardo Pazuello se internou no fim de 2019, depois de contrair a covid-19.

A hidroxicloroquina é uma versão mais recente da cloroquina. É considerada também mais segura, com menos efeitos colaterais — embora seja ligeiramente mais cara.

De qualquer forma, a droga não foi priorizada pelo governo federal, que gastou apenas R$ 42,6 mil para adquiri-la. A maior compra (R$38,9 mil) foi feita pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), uma empresa pública ligada ao Ministério da Educação (MEC) e que administra alguns dos principais hospitais universitários brasileiros.

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Depois da hidroxicloroquina, o medicamento com o menor desembolso foi o vermífugo ivermectina. O governo federal desembolsou R$ 121.434,26 pelo remédio em 2020, sendo que a maior compra foi para o distrito sanitário especial indígena do Xingu, no Mato Grosso, por R$ 29,3 mil. A nota de empenho deixa claro que a compra é para "enfrentamento de sinais e sintomas da covid-19 e também síndromes gripais" — uma finalidade que não consta na bula do medicamento.

Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo publicada em 7/1, a venda de ivermectina no mercado farmacêutico (para além das compras do governo Bolsonaro) cresceu 466% em 2020, com 42,3 milhões de caixas vendidas no ano. O pico foi em julho, com 12 milhões de caixas.

Os gastos da União com o antiparasitário nitazoxanida, vendido sob o nome comercial de Annita, não foram significativos até o momento — apesar da droga ter sido divulgada em evento no Palácio do Planalto e propagandeada pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, o governo federal não distribuiu o fármaco. Só R$ 2.250,00 foram usados na compra do medicamento, feita por um batalhão do Exército em Goiás.

As informações acima foram levantadas pela reportagem da BBC News Brasil usando diferentes fontes oficiais: Painel de Compras Covid-19 desenvolvido pela Secretaria Especial de Desburocratização do Ministério da Economia; o painel "Covid-19 Medicamentos", do Ministério da Saúde; o Portal da Transparência e a ferramenta Siga Brasil.

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A reportagem da BBC News Brasil solicitou informações e comentários ao Ministério da Saúde sobre o assunto desde segunda-feira (18/01), mas não houve resposta.

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