O Estado é uma ferramenta de uma classe para oprimir outra. A palavra classe poderia ser alterada para casta, de modo que, em vez de ser uma frase de Lenin em Estado e Revolução, fosse de Javier Milei. A questão é a quem o Estado está ao serviço, a maioria ou uma minoria.
Como o absolutismo político vem do absolutismo intelectual, o anarcocapitalismo e o comunismo partilham essa essência unidimensional. No primeiro relatório que fiz com Javier Milei em 2022, ele afirmou que prefere os comunistas aos sociais-democratas, representantes do modelo jurídico-racional de governo onde a autoridade deriva do respeito pelas normas como definiu Max Weber.
E não é por acaso que as potências intelectuais da LLA preferem inspirar-se em Gramsci, com a sua ideia de Estado como uma hegemonia blindada de coerção. Da coerção com persuasão, da força com consentimento, de uma parte coercitiva e outra ideológica. O aparato repressivo que ordena a sociedade com base no sistema econômico produtivo e na hegemonia dentro da sociedade civil, impondo valores e acumulando consensos ou adaptações para seus fins.
Gramsci sustentou que a guerra frontal com o Estado a partir de fora só levará à aniquilação porque a sua força coercitiva é muito superior, e recomendou a tomada de posições dentro do Estado como trincheiras de combate onde pode ser fortalecido e reabastecido para atacar a partir de dentro ("a toupeira dentro do Estado para destruí-lo").
A coerção é de Patricia Bullrich, a persuasão é de Santiago Caputo, seguidor das ideias de Gramsci aplicadas aos seus propósitos. Mas esta batalha cultural não poderia ser sustentada sem, primeiro, conquistas na economia real, por isso o criador da base material que permite que esta batalha cultural seja levada a cabo é Luis Caputo e depois os ideólogos da LLA criando consenso na sua tarefa. instalar uma certa priorização de valores junto com a gestão da história e da história do presente.
Na última quinta-feira na Rádio Perfil dedicamos a coluna do 370º dia de Milei, sob o título "Camarada Javier Stalin", na esteira dos discursos autocráticos do Presidente no último Festival da Juventude Conservadora Italiana, onde afirmou: "No nosso governo Somos implacáveis : quem vem com agenda própria ou não segue a linha partidária é expulso", e dias antes, em seu discurso no CPAC, citou diretamente o construtor da ex-União Soviética dizendo: "Como eu disse Lenin, sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário." Lenin desenvolveu a ideia de um "partido de combate" como uma organização férrea, hierárquica e disciplinada.
Milei também sustentou: "Para viver à altura do que a causa exige precisamos deixar de lado nossas aspirações pessoais", opondo-se ao seu próprio mantra liberal que prega "respeito irrestrito pelo projeto de vida dos outros". A reiteração da palavra "causa" (fundamento que antecede a ação), comum em textos revolucionários, é um sintoma dessa Milei empoderada.
Nos Estados Unidos também se debate sobre uma possível deriva autoritária agora que Trump retoma a presidência daquele país com maior poder e controle sobre os demais poderes do Estado. O principal especialista na história das ideias econômicas que vão do neoliberalismo ao libertarianismo, Quinn Slobodian, sustenta que "o autoritarismo em nome de uma maior liberdade econômica não é realmente uma contradição". O melhor exemplo foi a própria ditadura de Pinochet no Chile e os tigres asiáticos dos anos 80, que foram todos ditaduras, e depois a própria China.
Marcelo Longobardi alertou sobre o mesmo na reportagem da Rádio Perfil um dia após sua demissão da Rádio Rivadavia: "O problema de fundo não é mais Rivadavia, nem eu. Acho que, a esta altura do jogo, é um pequeno exemplo do rumo que a Argentina está tomando. Dá-me a impressão de que, aproveitando o que parece ser um sucesso, que tem obviamente a ver com a economia, o Presidente traçou um rumo. Tem demonstrado cada vez mais traços autoritários, autocráticos, que vão muito além das formas. Não é apenas um problema de vulgaridade, insultos ou falta de educação. Há algo, me parece muito mais relevante, por trás desses maus modos, que são esses traços, esses preconceitos muito marcantes de um presidente que já é comparado a Júlio César. Fiquei muito impressionado com essa comparação, quando ele citou a Legio XIII, que foi o início de uma ditadura (romana). Em termos gerais isto assemelha-se ao governo de Nayib Bukele. Também nesse caso, aproveitando um suposto sucesso, ele concorreu, o seu país caiu num formato muito autocrático, muito semelhante ao de Chávez. Inspirado por Júlio César e influenciado por Donald Trump e por pessoas como Víctor Orban, por personagens como os do Vox e pelos hilariantes intelectuais que o cercam (...) Milei não só mostra traços autocráticos cada vez mais marcados, mas também mostra opacos características. De Kueider até aqui, estamos vendo uma soma de opacidades muito significativas."
O comunismo verde é a descrição de Quinn Slobodian da autopercepção libertária do seu inimigo: "Desde a década de 1930 até ao presente, as pessoas que acreditam na liberdade económica acima de tudo viram uma série de inimigos diferentes em diferentes momentos da vida." Na década de 1930, eram os fascistas à direita e os comunistas à esquerda. Após a Segunda Guerra Mundial, o fascismo e o comunismo tecnicamente derrotados, o novo inimigo dos liberais econômicos ou neoliberais tornaram-se os sociais-democratas, as pessoas que estavam a construir o Estado-providência, que estão a criar demasiados direitos econômicos que as pessoas poderiam reivindicar. Para Friedrich Hayek, o caminho para a servidão tinha menos a ver com os comunistas do que com os social-democratas (e) especialmente desde a década de 1990, existe o receio de que o novo comunismo seja verde. "Os ativistas climáticos e os ambientalistas são agora os principais inimigos daqueles que tentam defender a liberdade econômica, das pessoas que lutam pelos direitos das mulheres, pela igualdade racial, pela ação afirmativa."
Voltando a Gramsci e Max Weber, à paixão e à razão, o gerente de um banco argentino disse que é outro dos paradoxos argentinos que o significante da racionalidade econômica tenha sido concedido a Javier Milei, uma pessoa irracional, como acrescentou contundentemente Gustavo González na mesma conversa. Tal como a irracionalidade do anarcocapitalismo e as citações da própria teoria revolucionária de Milei. Espero que pare aqui e não continue em direção a Stalin com seus expurgos.
* Conteúdo originalmente publicado em Perfil.com