Adna Isabella é uma das sobreviventes do atentado na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Região Metropolitana de São Paulo. O caso aconteceu em 2019 e foi um dos ataques escolares que deixou mais vítimas fatais no País. Dez alunos morreram, entre eles um ex-namorado da jovem, que foi alvejado em sua frente. Na época com 16 anos, Adna foi atingida com um tiro no pulmão e passou por uma cirurgia para retirar a bala. Mais de quatro anos depois, lembranças do ataque continuam vivas - e parte delas, ressignificadas.
Agora Adna tem 20 anos, terminou a escola, iniciou uma graduação em Gestão de Recursos Humanos à distância e é noiva de outro sobrevivente do marcante dia. A vida seguiu acontecendo, mas com rumos diferentes do que planejava na adolescência. Antes do atentado, ela nunca havia sido atendida por psicólogos. Agora, desde que tudo aconteceu, o acompanhamento psiquiátrico é fundamental para sua saúde. Para dormir, a jovem precisa recorrer a medicamentos, já que, sem isso, ela tem pesadelos com as cenas de horror. "Tudo volta muito forte. E aí eu tomo a medicação para poder pelo menos aliviar”.
Tudo começou por volta das 9h30 da manhã do dia 13 de março de 2019, quando dois homens entraram armados na escola. Ouvindo a gritaria, Adna correu para os fundos da instituição, onde ficava o centro de línguas, e se jogou no chão junto com outros alunos. Ali, ela olhou nos olhos de um dos invasores, que atirou contra ela. Do seu lado, estava Douglas, um ex-namorado do começo da adolescência, que também foi atingido.
"E aí, o portão abriu e um pessoal conseguiu levantar, conseguiu se esconder. Uma menina me levantou, eu já com muita dificuldade pra respirar, só que o Douglas ficou. Eu vi tudo, vi ele sendo morto na minha frente, mas no meu coração ainda tinha esperança dele estar vivo", relembra.
Os dias que sucederam o atentado foram torturantes para Adna, que, agora, convive com um quadro depressivo, de ansiedade e de pânico. Ao olhar no espelho, a imagem que ela via era a do ex-namorado. Dormir também não conseguia, já que os flashbacks da cena eram recorrentes. Sem contar no medo ao sair na rua, principalmente quando se deparava com qualquer imagem que remetesse à escola. Até alunos andando com mochila nas costas era um alerta. O atentado gerou sua primeira experiência com o luto e provocou sensações nela que poucos de nós conhecemos.
"Quando eu paro [o acompanhamento psicológico], eu sinto a diferença, porque é quando as crises pioram. É quando eu volto a sentir alguns sintomas do início", diz Adna, que continua se consultando com a mesma terapeuta em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em Suzano.
Apoio psicológico
Por parte da escola, Adna acredita que o apoio não foi o suficiente. Ela desabafa que, se tivesse sido acolhida em uma estrutura melhor, provavelmente, boa parte do que ela viveu após o trauma poderia ter sido evitada, tendo uma ressignificação diferente.
"O primeiro mês teve o acolhimento. Depois, todo mundo da coordenação vivia como se nada tivesse acontecido. E os alunos totalmente devastados. Só na minha sala teve duas perdas. Acho que teve um desfalque ali. Poderia ter sido melhor, tanto que até hoje eu acho que isso é um assunto que deve ser debatido, deve ser acolhido nas escolas", diz.
Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Educação de São Paulo, após o atentado, foram disponibilizados emergencialmente psicólogos para dar o suporte aos professores e alunos da escola. Não foi informada a quantidade de profissionais, nem por quanto tempo permaneceram na unidade. Segundo a sobrevivente, o apoio seguiu por 30 dias. Mas, por ela estar hospitalizada nesse período, acabou não conseguindo acessar a rede disponibilizada.
Foi no fim de 2019 que uma lei, que tramitava há cerca de 20 anos, foi promulgada e passou a exigir a atuação de psicólogos escolares nas redes públicas de ensino. Em São Paulo, onde aconteceu o ataque de Suzano e outros seis casos, a rede de ensino só passou a contar com um programa de psicólogos escolares em 2020. O Programa Psicólogos da Educação se estabeleceu, de fato, no início de 2021, 18 anos após o primeiro registro de atentado no Estado.
Lei quase foi vetada; entenda
- - A Lei nº 13.935, que prevê a prestação de serviços de psicologia e serviço social nas redes públicas de educação básica, foi promulgada em dezembro de 2019.
- - O projeto havia sido aprovado em setembro pela Câmara dos Deputados. Mas, em outubro, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou integralmente a medida.
- - Bolsonaro alegou que havia inconstitucionalidade no projeto e contrariedade ao interesse público. O veto dizia que a lei criaria despesas obrigatórias ao Poder Executivo sem ser indicada a respectiva fonte de custeio.
- - O veto, porém, foi derrubado em novembro pelo Congresso Nacional.
- - Foi dado o prazo de um ano, a partir de dezembro de 2019, para que as redes públicas de educação básica se alinhassem à medida. Segundo o Conselho Federal de Psicologia, o prazo foi estendido para o final de 2021 por conta da pandemia de Covid-19.
- - Esse projeto tramitou por cerca de 20 anos antes de ser instituído como lei. O processo foi acompanhado por iniciativas como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), a Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (Abrape) e a Associação Brasileira de Ensino da Psicologia (Abep), a Federação Nacional de Psicólogos (Fenapsi).
Quer que história vire livro
Adna diz ser evangélica desde pequena. Na adolescência, estreitou ainda mais os laços com a religiosidade. No dia do atentado, inclusive, ela conta ter sentido "a presença de Deus" enquanto ouvia um louvor na sala de aula.
"Foi muito impactante para mim, deu vontade de chorar e tudo. Passaram alguns minutos e eu li a Bíblia no celular, estava em uma passagem que diz 'Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único filho para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna'. Foi muito bom, mas se resumiu a isso. Depois eu desci para o intervalo e foi quando tudo aconteceu".
Ela conta que foi esse momento de fé que a manteve de pé, deu força e coragem para enfrentar o que veio em seguida. Essa relação com Deus também foi o que a aproximou de Igor Felipe Oliveira, de 21 anos, seu atual noivo e melhor amigo desde a época do Ensino Médio. Felipe não se feriu fisicamente no atentado e, de maneira geral, vê a situação como "uma lembrança normal".
Quando Adna voltou da internação do hospital, o processo de retorno ao convívio escolar foi lento. A cumplicidade de Felipe, quando ainda eram só amigos, foi fundamental. "Ele me visitava e, para me motivar a ir para a aula, ele falava para eu levar o violão. Ele esteve comigo em todo meu processo de volta à escola. A gente tocava e levantava louvores. Esses louvores, que tinham como intuito me acalmar, se tornaram movimentos de oração que envolveram a escola inteira. Aí, eu entendi que não era sobre mim, mas sobre um propósito muito maior", conta Adna.
Esse movimento de oração na escola ressignificou a situação, diz acreditar Adna. Apesar das dificuldades que ela ainda enfrenta, vê que o que se resumia apenas a dor e medo tomou outro caminho, ganhou um propósito maior. Toda essa história, agora a de sua vida, está sendo transposta para um livro, adiantou a jovem ao Terra. "Agora, Deus me deu uma história para contar", disse ela, se referindo ao sonho de escrever um livro que a acompanha desde a infância.
Gatilhos
Entre 2002 e junho de 2023, foram registrados 25 ataques em unidades de ensino brasileiras, segundo o estudo Raio-X de 20 anos de ataques a escolas no Brasil, realizado pelo Instituto Sou da Paz.
Além de gatilhos que surgem por outras ocorrências, lidar com o "aniversário" do atentado também é difícil. Felipe pensa mais em estar ali para dar suporte a ela do que em suas próprias feridas. "O aniversário a gente passa sempre juntos. Quando está chegando perto do dia, e ela está sentindo bastante, lembrando, eu sempre estou ali para acalmá-la", diz.
Ao falar sobre o futuro, o casal afirma querer ter pelo menos dois filhos. Para Adna, porém, já é doloroso pensar em como vai ser a ida dessas crianças para a escola. Mesmo com medo, ela não imagina privá-los do ambiente escolar. "Eu acredito muito que filhos são flechas, e eu acredito que eles vão ser luz onde eles estiverem", afirma.