'A gente pega água do poço para fazer merenda': escolas da Ilha do Marajó enfrentam falta de saneamento básico

Estudo mostra que 372 escolas não têm abastecimento público de água e 237 não têm tratamento de esgoto; 15 mil estudantes são impactados

27 ago 2024 - 05h00
Escolas da Ilha do Marajó enfrentam falta de saneamento básico
Escolas da Ilha do Marajó enfrentam falta de saneamento básico
Foto: Desiree Giusti/Habitat Brasil

Com 38 alunos, a Escola Araraiana II, de ensino infantil e fundamental, está localizada em uma área rural do município de Ponta de Pedras, na Ilha do Marajó, no Pará. Da cidade até a unidade escolar são três horas de viagem, diz a diretora e professora Nilda Maria Andrade da Conceição, de 56 anos. Ela, que já trabalha há 20 anos no local, hoje tem uma casa na comunidade para facilitar a chegada ao trabalho. 

Nilda conta ao Terra que, atualmente, a escola tem quatro salas de aula, dois banheiros -- um masculino e um feminino -- um pátio coberto e área para preparar a merenda. Embora ela tenha percebido avanços na infraestutura da escola ao longo dos anos, a instituição de ensino ainda carece de um serviço muito importante: o saneamento básico. Segundo a diretora, a escola não tem tratamento de esgoto nem abastecimento público de água. 

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"A gente pega água do poço para tomar e fazer a merenda das crianças. Essa água é tratada. O dono do poço trata com um remédio", afirma Nilda.

Mas essa realidade não é exclusiva da Escola Araraiana II. Várias unidades escolares do maior arquipélago flúvio-marítimo do mundo, a Ilha do Marajó, enfrentam desafios de acesso ao saneamento básico. Um estudo inédito feito com 398 escolas da região mostrou que 93% (372 escolas) não têm abastecimento público de água para consumo humano e uso geral, e 60% (237) não contam com nenhum sistema de tratamento de esgoto.

Com esses resultados, mais de 15 mil crianças e adolescentes são impactadas. Os dados são do Projeto Saneamento nas Escolas: Piloto - Marajó (PA), coordenado pela Habitat para a Humanidade Brasil.

As escolas vistoriadas no levantamento têm até 50 alunos matriculados e estão em comunidades ribeirinhas e rurais, em sua maioria. As instituições são de todas as 16 cidades da região: Afuá; Anajás; Bagre; Breves; Cachoeira do Arari; Chaves; Curralinho; Gurupá; Melgaço; Muaná; Ponta de Pedras; Portel; Salvaterra; Santa Cruz do Arari; São Sebastião da Boa Vista; e Soure.

O estudo considerou que saneamento básico inclui fornecimento de água potável, coleta e tratamento de esgoto, coleta e destinação adequada de resíduos sólidos e, no caso das cidades, dispor de um sistema de drenagem.

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Escola Araraiana II
Foto: Arquivo Pessoal/Nilda Maria Andrade da Conceição

"A ausência de saneamento básico afeta não apenas a qualidade de vida, mas também o acesso à educação e à saúde. Na Mesorregião do Marajó, essa questão é ainda mais urgente devido à privação desse direito por grande parte da população, que vive em áreas rurais e alagáveis", diz o relatório. 

Os resultados

Conforme o levantamento, a água para consumo humano de 88 escolas não recebe nenhum tipo de tratamento. Entre as fontes de água, estão poços, rios e igarapés. Em 126 delas, o tratamento é realizado com aplicação de cloro ou hipoclorito, enquanto as outras 184 recebem algum tratamento com outros produtos ou processos.

Das escolas que não apresentaram tratamento de esgoto, as soluções utilizadas são, em sua maioria, o lançamento de dejetos sobre o solo e/ou corpo hídrico, fossas sépticas ou fossas rudimentares.

Banheiro parcialmente adequado na EMEF Dra Ruth Passarinho e latrina (condição totalmente inadequada) na EMEF Nossa Sra. da Conceição em Muaná.
Foto: Habitat Brasil

Os pesquisadores também identificaram que 45% (182) das escolas não têm acesso à energia elétrica.

Outro ponto pesquisado foi o serviço de coleta de lixo. Ao todo, 356 (89%) escolas não tratam nem destinam adequadamente seus resíduos, optando por enterrá-los ou queimá-los, o que é o caso da Escola Araraiana II.

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"A gente queima o lixo. A servente leva o lixo para a casa dela e queima", afirma a diretora Nilda. 

Banheiros das escolas

O levantamento ainda apontou que 149 escolas (37%) não dispõem de banheiro. Assim, elas recorrem ao uso de latrinas, geralmente encontradas em estruturas precárias de madeiras próximas às escolas, sem um sistema adequado de esgoto -- ou até mesmo escolas que não possuem esse tipo de instalação.

Chaves e Breves são os municípios que lideram a lista de falta de banheiros nas escolas. Ambos têm 48 unidades vistoriadas sem banheiros.

Município Escolas sem banheiro
Anajás 11
Bagre 1
Breves 48
Chaves 48
Curralinho 2
Gurupá 2
Melgaço 2
Muaná 3
Ponta de Pedras 4
Portel 22
Santa Cruz do Arari 3
São Sebastião da Boa Vista 3
Total 149

Fonte: Habitat Brasil, 2024

No total, 249 escolas contam com banheiros, mas em 42 as estruturas foram consideradas inadequadas pelo estudo. Em 119, são parcialmente adequadas, o que indica a necessidade de reparos e reformas. 

As principais inadequações encontradas foram: descargas quebradas; vasos sanitários sem funcionamento adequado (precisa do uso de baldes para descarga); infiltrações; louças e metais danificados; e pisos de cerâmica em mau estado de conservação.

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"Em muitas situações, os estudantes precisam utilizar latrinas e beber água coletada diretamente dos rios e igarapés. São situações que contribuem para a disseminação de doenças. A ausência de banheiros ainda afeta a dignidade menstrual das meninas e as expõem a riscos desnecessários", diz Mohema Rolim, Gerente Nacional de Programas da Habitat Brasil.

Na Escola Araraiana II, o banheiro é feito de madeira e conta com apenas vaso sanitário. O relatório considerou o banheiro "totalmente inadequado".

O Projeto

A Ilha do Marajó está situada na foz do rio Amazonas, no estado do Pará. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 557 mil pessoas moram na região. O arquipélago tem quase 500 escolas municipais, no total. Das unidades pesquisadas, 202 estão em áreas alagáveis -- que sofrem a influência de cheias e secas de rios.

Esses dados levantados pelo estudo fazem parte da primeira etapa do projeto da Habitat para a Humanidade Brasil. Em 2022, o projeto foi selecionado pelo edital do Fundo Socioambiental e tem como objetivo melhorar o saneamento básico em escolas públicas do Marajó. Também com outros parceiros, a iniciativa pretende beneficiar até 460 escolas em 16 municípios. O investimento é de até R$ 43 milhões.

Banheiro totalmente inadequado na EMEF Araraiana II e Latrina (condição totalmente inadequada) na EMEF Cachoeirinha I em Ponta de Pedras.
Foto: Habitat Brasil

Além de visitas técnicas nas 398 instituições, foram feitas entrevistas com secretarias municipais de educação e saúde e oficinas com gestores de escolas. Os resultados das infraestruturas escolares estão sendo divulgados em uma plataforma que permite acompanhar o avanço do projeto, as necessidades de cada escola e as soluções implementadas.

Fonte: Redação Terra
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