"O tempo vai passar de qualquer jeito". Era isso que Raphael ouvia do marido, quando ainda se perguntava, em meados de 2020 e em meio à pandemia, se deveria mudar a rota, deixar o diploma de Direito pela USP (Universidade de São Paulo) de lado e retomar o sonho de ser médico. Ouviu a frase tantas vezes que se convenceu. "O tempo vai passar de qualquer jeito, então lá na frente acho que eu vou me sentir melhor se eu tiver tentado, me arriscado, do que se eu tiver simplesmente deixado o tempo passar", pensou. Em 2021, finalmente se decidiu. Tirou as apostilas da gaveta, inscreveu-se em cursinhos online e retomou uma rotina que, da última vez, lhe rendera o nome na lista da universidade mais concorrida do país. No final do ano, a decepção: não foi aprovado em Medicina.
"Meu mundo caiu. Esperava muito passar, e não passei", relembra. Na época, ainda trabalhava como funcionário concursado no TRF (Tribunal Regional Federal), o que consumia uma parte dos seus dias e não permitia que se dedicasse totalmente ao estudo para os vestibulares. Com a reprovação, decidiu, com o apoio do marido, que passaria a estudar exclusivamente para passar em Medicina. Tomou coragem. Deu um passo que as condições de vida em 2013 não lhe permitiram: deixou um emprego estável e um diploma renomado para se dedicar às apostilas.
O GUIA DO ESTUDANTE conversou com Raphael Rodrigo de Almeida, 35 anos, Bacharel em Direito e hoje estudante do primeiro ano de Medicina na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Ele, que já trabalhou como recenseador do IBGE, carteiro e funcionário público, defende o direito de mudar. "Você pode viver vários sonhos dentro de uma mesma vida".
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O primeiro diploma
A decisão de prestar vestibular para o curso de Direito, primeira graduação de Raphael, foi bastante pragmática. Em 2013, ele havia se inscrito em um concurso público para ser escrevente no TJ (Tribunal de Justiça), um cargo de nível médio mas bastante concorrido - inclusive entre pessoas já graduadas - pelos bons salários oferecidos. Naquele momento, uma carreira pública na área do Direito representava mais para ele do que muitas pessoas poderiam imaginar.
De origem simples, a família de Raphael vive em Biritiba Mirim (SP), cidade a cerca de 80 km de São Paulo. Na época em que ele prestou o concurso para o TJ, já vivia em repúblicas na capital e tornar-se funcionário público era a chance mais imediata de ascensão social e financeira. Poderia finalmente se bancar na cidade e morar sozinho, viajar e viver tudo que sonhava. A ideia de prestar vestibular para o curso de Direito veio, então, como um complemento quase natural: era um jeito de estudar e atuar na mesma área, e depois fazer carreira. Por mais que todo esse plano tenha sido gestado em menos de um ano, foi um sucesso.
Primeiro, veio a aprovação no concurso do Tribunal do Justiça. Depois, acumulando a bagagem de muitas horas de estudo em casa com um semestre de cursinho comunitário, fez a prova da Fuvest, que seleciona os alunos da USP. Em uma época em que a universidade ainda não tinha cotas sociais ou raciais, Raphael, que estudou a vida toda em escolas públicas, viu seu nome na lista de aprovados logo na primeira chamada. Estudaria na faculdade de Direito mais renomada do país.
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Um sonho chamado Unifesp
Para quem olhava de fora, o plano de Raphael naquele ano parecia ter saído perfeito. Mas por alguns instantes, ele hesitou. "Eu passei aqui na frente da Unifesp um dia e pensei 'nossa como seria legal se eu fizesse Medicina aqui, né?'", recordou o estudante enquanto conversava com o GUIA, sentado no gramado da mesma universidade entre uma aula e outra. O dia em que ele se refere ainda era em 2013, quando havia acabado de ser aprovado no concurso público. Voltou para casa decidido: iria fazer Medicina. Mas quando chegou lá, todo o restante pesou - a carreira estável, os planos para o futuro. "Foi uma mudança de vida tão grande, como eu iria jogar tudo pro alto?", relembra.
Assim como para muitos estudantes Brasil afora, Raphael sempre soube que ser médico por aqui tem um preço. As universidades públicas são muito concorridas. As particulares, muito caras. Além disso, o curso é em tempo integral e requer dedicação exclusiva. Com todos estes "contras" pesando na balança, desistiu da ideia temporariamente, mas duas grandes mudanças lhe fizeram mudar de ideia anos depois.
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Em 2018, quando estava no último ano do Direito, Raphael e Cleverson, seu companheiro, adotaram uma criança de 12 anos. O filho vinha de uma família vulnerável e carregava algumas lacunas de aprendizado, mas acompanhar a rotina profissional dos pais o incentivou cada vez mais a estudar. Logo que entrou no Ensino Médio, começou a se preparar pensando nos vestibulares e decidiu que, como eles, cursaria Direito. Acompanhar a evolução e escolhas do filho fez Raphael repensar as próprias: "me fez realmente refletir que eu também poderia voltar e querer mudar meu futuro".
Para completar, durante a pandemia voltou a olhar para a área da saúde, tanto que decidiu ingressar nos cursos de Educação Física e Nutrição à distância. Mas sabia que não era exatamente aí que gostaria de atuar. Em 2021, confidenciou apenas para Cleverson que estava pensando, novamente, em fazer Medicina e recebeu apoio incondicional do companheiro, mesmo quando a aprovação não veio no final ano.
Em 2022, decidido a deixar o emprego e dedicar-se exclusivamente à rotina de vestibulando, contou para o filho e mais algumas pessoas próximas dos seus planos. Desta vez, pôde comemorar depois de um ano: foi aprovado em Medicina na Famema (Faculdade de Medicina de Marília), Unesp (Universidade Estadual Paulista) e, mais tarde, na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), a mesma que havia sonhado em 2013.
Sabedoria acumulada
A rotina de estudante de Medicina não é a mesma de muitos de seus colegas, que deixaram há pouco tempo o Ensino Médio, mas Raphael não se arrepende do caminho que traçou. Fica feliz em dividir seu tempo entre a família e as atividades na universidade - além de assistir às aulas, ele também corrige redações em um cursinho popular da Unifesp e participa de outros projetos de extensão. E tem um outro olhar até para aquilo que muitos veem como dificuldades ou perda de tempo. "De repente tem uma aula que é mais chatinha, mas você sabe que aquilo também vai passar. É uma maturidade de aceitar melhor as coisas como elas são", reflete.
Para quem, assim como ele, pensa em mudar de rota e escolher uma nova carreira, Raphael compartilha um de seus maiores aprendizados nessa transição. "Mudar não é uma coisa negativa, a gente tem direito de mudar. Você pode viver vários sonhos dentro de uma mesma vida, não precisa ficar eternamente no mesmo lugar como se estivesse condenado àquilo. Ninguém é obrigado a ficar preso".