Como brasileiro entrou para a lista dos mais inovadores do MIT

Dentista baiano é cofundador da Afrosaúde, uma plataforma que conecta profissionais negros com pacientes

21 nov 2024 - 05h00
Arthur Lima é uma das pessoas mais inovadoras do Brasil, segundo o MIT
Arthur Lima é uma das pessoas mais inovadoras do Brasil, segundo o MIT
Foto: Dilvugação

Era um dia comum quando o dentista Arthur Lima saiu de casa para assistir a uma aula do seu mestrado em Saúde. Assim que chegou, uma colega pediu indicação de um profissional especializado em canal dentário. Só tinha um ‘porém’: precisava ser negro. Em uma conversa rápida para explicar a exigência, ela relatou ao amigo um caso de racismo em um consultório odontológico. Ele olhou em volta e tomou um susto: dos 60 alunos na turma, menos de 10 eram negros. 

Ao final da aula, voltou para casa com um papel rabiscado e um sonho inovador: criar um projeto que conectasse pacientes a dentistas negros. Quando foi compartilhar o ‘estalo’ com o companheiro, Igor Leo Rocha, Arthur viu que o exemplo estava mais próximo do que imaginava. O jornalista também tinha tido uma experiência pessoal que reforçava essa necessidade. 

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Mais que o exemplo, Igor também teve a visão de como fazer esse 'rabisco' virar algo muito maior: “Quando rabisquei a ideia, pensei que poderia ser qualquer coisa, um projeto, uma iniciativa. Mas foi o Igor quem teve a visão estratégica. Ele enxergou que isso poderia ser um negócio, uma startup com impacto social, capaz de transformar a forma como pessoas negras acessam profissionais de saúde e como esses profissionais se conectam com pacientes”, relembra. 

Arthur Lima e Igor Leo Rocha são os fundadores da AfroSaúde
Foto: Dilvugação

Em 2019, o casal tirou a primeira versão da AfroSaúde do papel. Passados cinco anos, em 2024, Arthur Lima foi reconhecido como uma das pessoas mais inovadoras do Brasil pelo MIT Technology Review. A plataforma de saúde fundada por ele e por Igor é hoje a maior rede de profissionais de saúde negros no Brasil e se prepara para uma nova empreitada: o projeto Sankofa. 

'Faça você mesmo'

A história de Arthur Lima com a saúde começou em 2011, quando decidiu prestar um vestibular para Odontologia em uma universidade privada de Salvador. Mais tarde, em 2019, comemorou a aprovação no mestrado em Saúde, Meio Ambiente e Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). 

“Tinha recém-concluído uma especialização por meio de um programa de residência em Saúde da Família, com foco em Saúde Pública, e dividia meu tempo trabalhando como dentista no Projeto Saúde Móvel, que levava atendimento odontológico para comunidades do interior da Bahia”, conta. 

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A correria era grande, mas ele seguia levando a rotina pesada em frente. Para ele, seu destino estava claro: iria terminar o mestrado, tentar emendar em um doutorado e seguir carreira na Universidade. No entanto, ele não contava que a vontade de empreender iria aparecer para virar sua vida do avesso.

Ideia de Arthur Lima surgiu em uma conversa com uma amiga
Foto: Dilvugação

Antes, sequer passava pela sua cabeça incluir o empreendedorismo em seus planos. "Nunca tive contato significativo com empreendedorismo durante a graduação em Odontologia, assim como acontece em muitas outras áreas da saúde. Essa é uma lacuna importante, considerando que o dentista precisa desenvolver uma mentalidade empreendedora para atuar de forma eficaz, especialmente se optar por abrir uma clínica ou consultório, algo bastante comum na profissão", argumenta.

Arthur só se 'rendeu' à ideia mais tarde, após a conversa com uma amiga. A colega de profissão pediu a indicação de um denstista negro e despertou sua curiosidade. Intrigado, ele perguntou o motivo.

"Uma paciente havia sofrido racismo durante o atendimento com um dentista não negro e, desde então, sentia-se desconfortável em se consultar com outro profissional que não fosse negro. Ela acreditava que um dentista negro poderia proporcionar um ambiente mais acolhedor e sensível à sua experiência", explica. Ao olhar em volta, Arthur se deu conta do tamanho do problema.

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"Naquele momento, busquei entre os colegas da minha turma, mas, de um total de mais de 60 alunos, menos de 10 eram negros. Fui procurar em outros grupos da faculdade, e a realidade era a mesma: a representatividade era mínima", lembra.

A constatação parecia absurda e preocupante, principalmente em uma cidade em que quase metade dos moradores são negros. Em Salvador, onde Arthur nasceu e vivia, 49,07% da população se considera parda e 34,14% se consideram pretos, enquanto apenas 16,49% são brancos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O estado da Bahia ainda tem o maior percentual de população preta no Brasil: 22,4%. 

Dentista baiano viaja o mundo representando a startup de saúde
Foto: Dilvugação

Ao perceber que a necessidade de preencher essa lacuna na área da saúde era urgente, Arthur sabia que teria, ele mesmo, que tentar mudar essa realidade. Foi então que o dentista 'bolou' a ideia de criar uma plataforma de saúde que conectasse dentistas negros aos pacientes.

A ideia só viria a se tornar uma startup com uma ajudinha do companheiro, Igor Leo Rocha, que ficou animado com a possibilidade por já ter passado maus momentos em atendimentos 'frios' e não personalizados.

Por muitos anos, ele sofreu com uma irritação na nuca. Apesar de procurar tratamento em diversas ocasiões, nada parecia melhorar e, em alguns casos, até pioravam a irritação. A solução veio por acaso, em uma consulta com uma médica negra.

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"Certa vez, em uma consulta médica de emergência para outra questão, a médica que o atendeu, uma mulher negra, reparou na irritação na nuca e mencionou que o antibiótico que ela estava prescrevendo para a queixa principal também resolveria o problema. Ela sabia disso porque conhecia a condição, comum em homens negros", explica.

"Isso nos fez pensar: se Igor tivesse encontrado um dermatologista especialista em pele negra desde o início, ele poderia ter evitado tantos tratamentos frustrantes. A experiência mostrou o quanto ter um profissional de saúde com vivências e repertório cultural semelhantes pode fazer toda a diferença no cuidado", destaca.

A partir de uma longa conversa e trocas de experiência, o casal criou a startup Afrosaúde. "Iniciamos o processo de validação da ideia. Fizemos entrevistas, estudamos o mercado, e conversamos com potenciais usuários para entender suas dores e necessidades", detalha. "Literalmente, fui aprendendo e fazendo ao mesmo tempo", admite.

Se a ideia surgiu a partir da troca com uma colega de profissão, ela cresceu e se aperfeiçoou na sintonia com o marido e sócio.

Arthur Lima é dentista e empreendedor
Foto: Reprodução/Instagram

"Não empreender sozinho foi essencial para essa caminhada. O Igor já trazia uma bagagem sólida e mais experiência no campo, o que me ajudou muito e a expertise dele é um ponto forte para a nossa empresa. Aos poucos fui descobrindo e desenvolvendo habilidades que eu nem sabia que tinha, como negociação, conhecimento em marketing, reflexão crítica e escuta ativa", enumera.

"Essa transição foi muito mais do que uma mudança de carreira; foi uma jornada de autoconhecimento e crescimento. Hoje, reconheço o valor de cada aprendizado nesse processo e sou grato por ter tido o apoio de uma parceria sólida, que me permitiu crescer como empreendedor e como pessoa", ressalta. 

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Deveria ser óbvio, mas não é 

Apaixonado pelo seu negócio, Arthur Lima faz questão de destacar que a AfroSaúde surgiu para tentar sanar uma lacuna injusta, mesmo no Estado mais negro do País. Porém, para o fundador da startup, nem mesmo os números facilitaram na hora de vender sua ideia. 

"A falta de representação e diversidade na saúde parece um problema tão óbvio, não é? No entanto, o fato de estarmos em Salvador, uma cidade onde a maioria da população se autodeclara preta e parda, não tornou o processo mais simples ou fácil. Na verdade, foi o oposto", explica. 

Na primeira vez em que apresentou o projeto em um evento da cidade, Arthur e Igor foram questionados: será que a ideia não estaria segregando profissionais ao optar por priorizar dentistas negros no atendimento? Na verdade, a plataforma não faz essa exigência. 

"Não afirmamos que profissionais negros devem atender apenas pacientes negros. O que destacamos, com base em muitas pesquisas, inclusive, é que a presença de profissionais mais diversos facilita o cuidado em saúde. Isso se reflete na comunicação mais fluida, maior adesão aos tratamentos e, muitas vezes, no entendimento mais profundo de diversas questões que afetam o paciente", detalha. 

Empreendedor participou de Assembleia Geral da ONU
Foto: Dilvugação

O valor acessível da plataforma também é um atrativo para profissionais de saúde e pacientes. No site da AfroSaúde, por exemplo, há consultas psicológicas a partir de R$ 70. "Não se trata de preço social, mas de encontrar um equilíbrio entre o custo e o perfil do profissional, permitindo que a plataforma seja viável para diferentes públicos", garante.  

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Para ele, outro ponto fundamental é o impacto econômico e a visibilidade que o projeto proporciona aos profissionais da plataforma. "Em 2023, levantamos uma média do valor gerado para cada profissional que atendeu conosco, e essa média ultrapassou R$ 9 mil anuais", celebra.

"Colocamos nossos profissionais em evidência, seja por meio da produção de conteúdo, seja indicando-os como especialistas para a imprensa. Fazemos questão de mostrar à sociedade que existem médicos, dentistas e outros profissionais negros que são referências em suas áreas, e que não se limitam a falar apenas sobre questões raciais", frisa. 

Repercussão internacional

De 2019 para cá, Arthur Lima colecionou muitas conquistas, até mesmo em âmbito mundial. A startup criada por ele e por Igor Leo Rocha saiu até no Financial Times, um importante jornal de negócios britânico.

Com a AfroSaúde, o casal também já recebeu prêmios como o World Summit Award 2024 na categoria saúde e bem-estar. "O Prêmio WSA seleciona, promove e divulga projetos mais inovadores, criativos, inclusivos, com maior impacto social que ofereçam soluções para os ODSs e agora nós estamos no processo para concorrer a etapa mundial no Congresso Global do WSA em Hyderabad, Índia", comemora Arthur. 

Fundador da AfroSaúde é convidado para evento a nível mundial
Foto: Dilvugação

O dentista e empreendedor também participou do programa Youth To The Table (YTTT) da We Are Family Foundation (WAFF), que leva delegações de jovens para alguns dos encontros mais influentes do mundo, como a Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGA), a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP) e o Fórum Econômico Mundial (WEF).

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"Neste ano, participei como um dos delegados jovens na Assembleia Geral das Nações Unidas, participando dos eventos, mas também co-criando eventos e sendo speaker em alguns deles. Foram dias em que pude estabelecer uma rede forte tanto para a AfroSaúde quanto para mim mesmo", conta. 

Conquistas à parte, Arthur segue com a 'mão na massa' para expandir a AfroSaúde. Recentemente, a plataforma lançou o Sankofa, um produto de assinatura  que visa democratizar ainda mais o acesso à saúde.

"Estamos cientes de que uma grande parcela da população brasileira não tem cobertura por planos privados e encontra dificuldades para acessar serviços de saúde de qualidade. O projeto é direcionado especialmente para estas pessoas", explica.

Baiano participou de um programa de empreendedorismo e liderança nos EUA
Foto: Reprodução/Instagram

A assinatura do Sankofa permite que qualquer pessoa tenha acesso a consultas com 20% de desconto, começando com a psicologia, além do acesso a benefícios com parceiros nas áreas de saúde, bem-estar e educação. "O foco é oferecer um modelo mais próximo e personalizado de cuidado, mantendo nossa essência de diversidade e representatividade", pondera.

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Fonte: Redação Terra
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