Rayssa Feitosa, recém-formada em medicina, comemorou seu primeiro plantão ao lado da sua mãe em um hospital no Recife. Ela conta os desafios de se formar na medicina, e destaca a luta pela educação para melhora da vida.
Médica recém-formada, a jovem Rayssa Feitosa, de 27 anos, comemorou o primeiro plantão ao lado da sua mãe, a enfermeira Ana Patrícia Feitosa, em um hospital do Recife (PE). Emocionada com a conquista, a médica compartilhou uma foto do momento e viralizou no X (antigo Twitter).
"Meu primeiro plantão com a minha mãe veio aí. Eu como médica, ela como enfermeira. Não consigo nem dimensionar em palavras o impacto desse evento. Ela estava toda bestinha indo a cada 30 minutos perguntar se eu precisava de ajuda", escreveu na legenda.
Com mais de um milhão de visualizações, a publicação foi compartilhada em vários perfis nas redes sociais. Inclusive, até pelo apresentador global Luciano Huck. Em entrevista ao Terra, Rayssa compartilha o que sentiu ao trabalhar ao lado de sua mãe, no mesmo plantão.
Meu primeiro plantão com a minha mãe veio ai
Eu como médica, ela como enfermeira.
Não consigo nem dimensionar em palavras o impacto desse evento. Ela toda bestinha indo a cada 30 minutos perguntar se eu precisava de ajuda.
Rica do que o dinheiro não compra
Privilégios? Mereci! pic.twitter.com/JcxlMZdW8K
— Rayssa Feitosa (@rayssafeit) April 13, 2024
Segundo ela, ter a mãe ao lado, naquele plantão em específico, foi especial. Isso porque ela estava na UTI, com pacientes um pouco mais graves.
"Me senti muito segura porque tê-la ali do lado me dava uma sensação não somente pelo fato dela ser acolhedora enquanto mãe, mas por saber que ela é uma profissional de muita excelência e que independente da situação que pudesse acontecer, eu sabia que poderia contar com ela para me ajudar", relata. "Ao mesmo tempo, foi uma sensação de segurança e acolhimento muito forte, coisa que muitas vezes na minha vida por ser uma mulher negra dentro da medicina não é o que eu acabo recebendo.”
Formação
Formada em fevereiro deste ano pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em Petrolina, a jornada de Rayssa até a aprovação no curso de medicina não foi fácil. A jovem, que compartilha a rotina de recém-formada nas redes sociais, descreve as dificuldades enfrentadas na trajetória por ser uma mulher negra e pobre. Ela ingressou na instituição no segundo semestre do ano de 2017.
Para entender a trajetória de Rayssa, no entanto, é preciso conhecer sua mãe. Filha de empregada doméstica, Ana Patrícia viu nos estudos a chance de mudar a vida da família. Ela completou o ensino médio após o nascimento de Rayssa e só depois de alguns anos conseguiu ingressar no curso de enfermagem.
A jovem médica lembra que sua mãe sempre a incentivou a estudar.
"A nossa família vem de uma realidade de muita escassez, onde as oportunidades sempre foram muito escassas, e por conta disso minha mãe sempre falou, sempre foi um discurso muito forte que ela carregou conosco, assim, praticamente uma lavagem cerebral, de que para mudar a nossa realidade de escassez e falta, a única porta que a gente, enquanto pessoas pretas, pobres, principalmente vivendo no Nordeste, que é o nosso contexto, seria através da educação. Eu acredito muito nesse discurso, porque realmente foi uma chave de transformação para a nossa família", afirma a médica Rayssa Feitosa.
Após a conclusão do ensino médio, Rayssa dedicou quatro anos aos estudos em um cursinho pré-vestibular. Ela lembra que o momento foi importante para reforçar os conhecimentos necessários para alcançar uma boa nota no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem).
No entanto, essa etapa também lhe causou incertezas diante dos desafios que precisaria enfrentar. Em um ano, ela resolveu abrir mão até dos momentos de lazer com amigos para passar mais horas estudando e revisando os conteúdos.
"Foram longos quatro anos, esse ano, inclusive, completa 11 anos que eu iniciei essa jornada para poder ser médica, e dentro da minha realidade, tem um contexto diferente, porque apesar de vir de uma situação de muita privação, de ter uma família realmente muito pobre, eu tive muita sorte de ter uma mãe que valorizava esse processo da educação, e enxergar realmente isso como uma pedra preciosa, um diamante a ser lapidado", acrescenta.
Desafios na formação
Até ser chamada pela Univasf, Rayssa montou o plano B de tentar usar a nota para ser oficial de polícia em um concurso na Paraíba. No entanto, apesar de conseguir o primeiro lugar, ela foi eliminada no teste físico devido a lesões no braço e na perna. Passada a frustração, ela foi surpreendida com a convocação da universidade dias depois.
"Por sorte ou destino, uma pessoa desistiu e as outras duas eram de outras cidades, e foram remanejadas para universidades de suas localidades. Ainda estava em João Pessoa quando descobri que passei", lembra.
Na universidade, Rayssa diz ter passado por dificuldades para se manter no curso e aponta a falta de diversidade racial no ambiente acadêmico. De 40 pessoas da turma, apenas cinco eram negras, incluindo ela.
No entanto, ao citar a filósofa e pesquisadora norte-americana Angela Davis, referência em estudos étnico-raciais e feministas, a médica ressalta a importância do movimento de resistência de mulheres negras diante do racismo estrutural.
"Apesar de ter que enfrentar situações que me tiraram da zona de conforto, me tiraram da inocência que eu tinha sobre o mundo, vamos dizer assim, precisei, sim, lidar com muitas situações de machismo dentro da faculdade, de racismo. E, por muitas vezes, isso desestimula, te deixa triste, mas não pode ser algo que te faça retroceder. Porque, no fundo, escrever a nossa história é também continuar a história dos nossos ancestrais e honrar a luta daqueles que vieram antes da gente. Angela Davis diz: 'Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela'", enfatiza.