Hoje com 43 anos, a paulista Luana Silva Romao está a apenas alguns meses de realizar um sonho de infância. Em outubro, ela, que é negra e veio de uma família de baixa renda, irá se formar em medicina. A caminhada até o diploma não foi fácil, e exigiu equilíbrio entre maternidade, trabalho no período noturno como enfermeira e condições financeiras.
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Ao Terra, a mulher de São Bernardo do Campo, São Paulo, conta que sempre gostou do ambiente hospitalar. Devido a um diagnóstico de bronquite asmática, ela precisava frequentar os locais para o tratamento e lá encontrava uma prima, que era auxiliar de enfermagem e ajudou a despertar a admiração pela área da saúde.
"Eu sempre gostei daquele ambiente, sabe? Eu entrava lá e pensava: 'Quero trabalhar aqui'. Eu não me identificava com nenhum outro lugar, com escritório, com nada. Só dentro do hospital", lembra Luana.
Contudo, pouco antes de se formar no ensino médio, o pai perdeu o emprego e a mãe foi diagnosticada com lúpus, fazendo com que as prioridades da família mudassem de ordem. Aos 18 anos, Luana, que trabalhava desde dos 16, precisou se dedicar de modo integral a um ofício.
"Não fui para faculdade nenhuma, não prestei vestibular. Fiquei super triste, arrasada. Lembro que todos os meus colegas de turma foram fazer faculdade e eu fui procurar emprego", conta.
Um pouquinho mais perto do sonho
Ela trabalhou como recepcionista e depois como garçonete. Enquanto ajudava em casa, juntava dinheiro para cursar enfermagem. Primeiro, fez o curso de auxiliar e, em seguida, o técnico, mas nunca perdeu o sonho de vista. Luana até tentou prestar vestibular em uma instituição de ensino pública, mas precisava trabalhar para ajudar em casa, e não pôde.
"Quando terminei, falei assim: 'Bom, agora eu vou arrumar um emprego dentro do hospital'", relembra. "Consegui um emprego no Hospital Santa Casa daqui de Santos, que era meu sonho trabalhar lá. Fiquei super feliz, entrei e já estava melhor de autoestima. Pelo menos, estava no ambiente de trabalho que eu gostaria".
Após alguns anos, o pai de Luana passou em um concurso e a realidade de sua família melhorou um pouco, mas não o bastante para ela conseguir pagar com tranquilidade as mensalidades do curso de enfermagem. Alguns atrasos depois, ela decidiu trancar o curso.
"Nessa luta, mudei de hospital. Eu não tinha muita coragem de sair, porque eu tinha medo... Medo de perder aquele emprego, que eu já estava tinha um tempo e que estava bem adequada para arriscar outro e de repente não ficar, fosse mandada embora. Morria de medo de ficar sem nada, mas eu queria muito terminar a faculdade e tentar melhorar [de vida]", explica.
Com dedicação, conseguiu passar em um processo seletivo em uma unidade de saúde onde receberia mais e voltou para a faculdade. No ano seguinte, passou para um concurso municipal como auxiliar de enfermagem e conseguiu se estabilizar. Em 2011, com quase 30 anos, concluiu sua primeira graduação.
"Eu tava lá, qual era meu pensamento era: 'Tudo bem, passei pelo técnico, [..] mas assim que der, eu vou tentar fazer medicina. Nem que eu faça 60 anos, eu vou. É um sonho e eu vou fazer", destaca.
Luana detalha que, depois de tantos anos, deixou o sonho um pouco de lado para investir na vida. Teve um filho, um menino chamado João, fruto de seu segundo casamento, por exemplo. Mas, em uma conversa com o marido, passou a considerar cursar medicina no Paraguai ou na Argentina, como alguns amigos fizeram.
Apesar do medo, já que o filho tinha apenas cinco meses de nascido, preparou o plano de ação com apoio do marido e quase o executou. Antes de consagrá-lo, no entanto, outra alternativa surgiu.
"Me lembro até hoje. Eu estava deitada, tinha almoçado e vi no jornal, assim, as faculdades que iam abrir dois cursos novos de medicina na Baixada Santista. Vi que ia abrir a Unoeste, no Guarujá, e a São Judas, em Cubatão. Quando eu vi isso, me deu uma ponta de esperança [...]. Falei: 'Vou tentar o vestibular. Se eu passar, começo'", conta.
Dito e feito: em 2018, ela passou na primeira tentativa. Luana admite que não esperava passar, pois havia um tempo desde que tinha feito o curso preparatório e já estava com 37 anos.
"Me ligaram e me falaram que eu tinha que pagar a matrícula, que era o valor de uma mensalidade e precisava de um fiador. Eu fiquei assim, em choque, falando: 'Meu Deus, o que eu vou fazer agora?'. Falei 'Bom, tem dinheiro para um semestre'", acrescenta.
Durante este período, seu pai morreu e deixou um valor de herança. Parte dele foi destinado para o primeiro semestre do curso. Ela conversou com um amigo e fez a matrícula.
Primeiro dia de aula de um sonho de anos
"Fui fazer a matrícula com o meu bebê no colo, mamando ainda. Ele estava com oito meses e foi comigo assinar todos os papéis. No dia seguinte, eu tinha que estar lá, porque as aulas já tinham começado. Fui chamada em uma segunda chamada. [...] Quando cheguei na faculdade, cheguei um pouco mal. Eu saí de casa, deixei o meu filho na creche porque eu tinha que deixar ele com alguém. Eu trabalhava à noite, o pai dele também", relembra Luana, sem conter as lágrimas.
De acordo com ela, o choro era por sentir que não era uma boa mãe. "Eu tava me achando uma péssima mãe, que tava largado ele, mas ao mesmo tempo feliz por estar indo para um sonho de longa data", explica.
"Eu senti um misto de [sentimentos]. Teve momentos que eu parei assim: 'Meu Deus, o que eu tô fazendo aqui, sabe? Será que tá certo isso? Será que vale a pena eu estar com essa idade aqui? Será que vai dar certo? Será que vou voltar amanhã? Será que vou dar conta de cuidar do meu filho, de ter casa, de ter um relacionamento, um trabalho?'", desabafa.
"Até hoje. Em outras entrevistas, eu chorei um montão, porque é assim até hoje. Todas as vezes que eu piso lá, falo assim: 'Caramba, achava que ela teria que ficar para a próxima vida, mas, não, consegui nesta mesmo', diz Luana Romão, prestes a se formar em medicina.
Assim como aconteceu no curso de enfermagem, logo após o primeiro semestre ela teve dificuldades para pagar, mas tentava dar conta com empréstimos. Com a chegada da pandemia da Covid-19, em 2020, a situação se complicou e ela pensou em trancar o curso por não ter como pagar. No terceiro ano de curso, a mensalidade estava em R$ 12 mil.
"Em 2021, o financiamento apareceu lá [na sala de aula]. Elas fizeram uma simulação. [...] Eu consegui ele na metade do curso, foi o que me possibilitou seguir até agora, chegando no final, porque, se não, com certeza, eu tinha trancado a matrícula", afirma ela, que aderiu ao financiamento da PraValer.
Reta final
Faltando apenas seis meses para se formar, Luana revela que é procurada por mulheres negras e de baixa renda, como ela, para conversar e ouvir suas histórias.
"Muita gente me chamou, perguntando se era verdade mesmo, se era possível. Muito enfermeiro, muita gente técnica, auxiliar, porque eu fui essa pessoa. Muita gente veio me perguntar se valia a pena, se era difícil conseguir a bolsa, e eu fiquei muito contente em falar, porque não tive muita referência", destaca. "Eu fui sozinha, no escuro e, quando alguém vem me perguntar, acho muito legal poder falar a minha experiência para a pessoa e falar que é realmente possível".
O próximo passo já está decidido, e é pela especialização. Luana admite, no entanto, que ainda não definiu se começará por Urgência e Emergência ou por Clínica Médica.