'Nasci filho de costureira. Meu filho, de professor universitário', diz ativista que entrou na faculdade com cursinho que ele mesmo criou

Ao Terra, Vitor Del Rey, presidente do Instituto Guetto, conta sobre sua trajetória não linear de ‘mudança de vida’ pela educação

24 nov 2023 - 05h00
Para Del Rey, a frase "sem saber que era impossível, foi lá e fez" representa muito a sua história
Para Del Rey, a frase "sem saber que era impossível, foi lá e fez" representa muito a sua história
Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal/Vitor Del Rey

Foi a vontade de ‘querer chegar lá’ que fez Vitor Del Rey, de 38 anos, trilhar um caminho rumo à graduação, estudando em um cursinho pré-vestibular social que ele mesmo criou. Nascido em Nova Iguaçu, no Morro da Cocada, no Rio de Janeiro, Vitor foi o primeiro entre seus cinco irmãos a se formar na faculdade. Mas sua trajetória nunca foi linear, com três reprovações no ensino básico e um diagnóstico de TDAH (Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) recebido há poucas semanas.

Vitor reconhece ter mudado de vida por meio da educação: ‘Nasci filho de costureira. Meu filho, de professor universitário”, afirma em conversa com o Terra.

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Agora mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas e presidente do Instituto Guetto, Del Rey segue se destacando nacional e internacionalmente com seus trabalhos e pesquisas voltados à superação do racismo por meio da educação, tecnologia e empreendedorismo.

Bem-humorado e sem mascarar suas opiniões, Del Rey contou sobre seus projetos, motivações e enfrentamentos - que compõem sua história - para a reportagem. As declarações foram dadas durante o 9º Fórum Brasil Diverso, em São Paulo, neste mês. Confira:

“Vou ser ele”

Com 25 anos, eu trabalhava em um lugar como atendente de telemarketing e percebi que sem o nível superior não dava para ser mais do que aquilo. 

Tinha uma coisa que me incomodava muito. As pessoas sempre me falavam que eu era muito inteligente, que eles percebiam que eu ia muito longe… E eu ficava sentado ali, pensando: ‘Pô, mano, muito longe é isso aqui? Isso não é longe”. 

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Lembro que na minha infância eu sempre percebia que nos filmes tinha um prédio muito alto, espelhado, onde sempre estava acontecendo uma reunião, com uma mesa grande com várias pessoas - onde estava sentado somente um homem preto de terno e ‘black power’. “Tá bom, vou ser ele. Só vai ter um mesmo, então vamos lá”. Mas para ser aquele cara de black power, eu tinha que estudar.

Comecei a procurar possibilidades e entrei em contato com o pessoal do Educafro, do Frei David [David Raimundo dos Santos, fundador da Educafro, projeto que já garantiu acesso ao ensino superior a mais de 100 mil pessoas negras]. Fui lá para saber como eu conseguiria uma bolsa de estudo e acabei criando um cursinho pré-vestibular com o apoio deles no Rio de Janeiro.

Criando, eu estudaria e, passando na prova, a Educafro garantiria minha bolsa por meio de uma parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Me juntei com uma amiga, Priscila Oliveira, que conheci no Educafro, e criamos o curso. Ele ainda existe e se chama pré-vestibular Nelson Mandela. Ele funciona na Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, no Centro do Rio desde 2012.

Os primeiros passos na Educafro: "Estava começando a me aceitar como negro aos 26 anos"
Foto: Arquivo Pessoal/Vitor Del Rey

Corre

Tivemos que ir atrás de professores voluntários enviando mensagens no Facebook e entrando em contato com universidades para saber se universitários no final da graduação gostariam de dar aulas lá. Quando algum professor faltava, a gente dava aula no lugar - e tínhamos que estudar a matéria. 

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Tinha, também, a questão do curso ser no centro do Rio e muitos precisarem de transporte para chegar até lá. Então começamos a fazer caixinhas [de arrecadação] para que as pessoas tivessem algum recurso para conseguir chegar ao curso.

Para termos o material didático começamos a negociar com cursinhos pagos, para ver se poderiam ceder apostilas ou, até mesmo, disponibilizar materiais para baixarmos pela internet. E depois tínhamos que ter dinheiro para fazer xerox… Foi com muita dificuldade que conseguimos fazer dar certo.

Eu e Priscila fizemos o mesmo vestibular na FGV, em 2013, um ano depois da criação do cursinho. Ela passou em 19º lugar e eu em 18º. Nos formamos e eu fiz mestrado em administração pública. Já a Priscila, mais interessada em questões ligadas a Direitos Humanos, foi fazer mestrado na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) nessa área.

Eu tive uma trajetória estudantil e, depois acadêmica, muito difícil - o que é comum a pessoas pretas ou brancas pobres... Mas, apesar de todas as dificuldades, a gente tinha essa ambição, motivada pela ideia de que a educação iria mudar as nossas vidas.

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Uma das turmas do pré-vestibular Nelson Mandela, filiado à Educafro, no Rio de Janeiro
Foto: Arquivo Pessoal/Vitor Del Rey

Mudar de vida

Toda vez que a gente fala que a educação vai mudar nossa vida antes de ter um pensamento crítico, a única coisa que a gente está falando é da área econômica. A gente só está dizendo que não aguenta mais ser pobre e que, se a gente estudar, vamos virar classe média. Que não é de todo verdade, mas também não é mentira.

Aconteceu comigo. Mas muita gente que está estudando não consegue. Mas no meu caso, a educação entregou aquilo que ela se propunha.

Eu nasci filho de uma costureira no Rio de Janeiro. Quando meu filho nasceu, ele nasceu filho de um professor universitário. E a mãe dele já tinha graduação também. Então, de fato, a educação transformou e mudou as nossas vidas.

Mas é um processo de médio e longo prazo que precisa ser um projeto da família. Se a família não te dá suporte, você acaba abandonando. A minha não me deu suporte, mas eu sou insistente, né? Sou teimoso e teimei. Hoje minha família é muito feliz.

Eu fui o quinto filho de seis, o primeiro a fazer universidade. Hoje eu só tenho dois irmãos que ainda não têm ensino superior. O restante, todo mundo já fez. E por quê? Porque alguém fez e teve a vida mudada. Aí os outros acreditam.

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Del Rey com seu filho, Aaron
Foto: Reprodução/Instagram/@vitordelrey

TDAH

Há três semanas que eu fui diagnosticado como um adulto com TDAH. Tenho uma amiga diagnosticada há um ano e eu conversava com ela e falava: ‘Tenho essas paradas aí todas’. Então fui a uma psiquiatra e isso foi confirmado. Talvez o que ela me disse que mais tenha me tocado foi que não consegue imaginar onde eu estaria se, aos seis anos, tivesse tido o diagnóstico e começado o tratamento. Nem eu. 

Tenho uma trajetória bagunçada. Acho que não tem nenhuma pessoa preta com uma trajetória ‘normal’. Mas as pessoas pretas com TDAH, menos ainda. Minha trajetória é feita de muito cansaço. Mas eu consegui.

Outras vidas sendo mudadas

Já passaram pelo cursinho, nesses quase 10 anos, mais de 400 alunos. A taxa de aprovação em vestibulares é alta, de mais de 70%. Então é um pré-vestibular que tem muita entrega, mas que também precisa de suporte para continuar funcionando. Ele atua como resistência. 

As inscrições abrem no final do ano, em dezembro, com as turmas tendo início em janeiro. Tudo pode ser acompanhado pelo Instagram @prenelsonmandela. Também abrem turmas no meio do ano, normalmente entre julho e agosto.

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Pela ligação com a Educafro, quem estuda no pré-vestibular Nelson Mandela e passa no em faculdades parceiras do Educafro consegue bolsa de 100%. São faculdades como PUC, Mackenzie, Fundação Getulio Vargas…. A mensalidade do meu curso, no primeiro período, era de R$ 2.500 e eu não pagava nada para estudar. Estudar em uma universidade de elite, de prestígio, a 'zero reais', é uma oportunidade que você não pode perder.

No 9º Fórum Brasil Diverso, Del Rey participou do painel 'Sonhando Futuro Possíveis' ao lado de Carlos Netto e Creomar de Souza
Foto: Beatriz Araujo/Terra

Também sou presidente do Instituto Guetto - Gestão Urbana de Empreendedorismo, Trabalho e Tecnologia Organizada. A gente desenvolve pesquisas, consultorias na área de educação, empreendedorismo e atuamos na pauta ESG - diversidade, equidade e inclusão.

O instituto tem uma escola, a Escola da Ponte Para Pretxs, onde formamos pessoas para o mercado de trabalho. Lá elas aprendem inglês, francês, espanhol, programação blockchain, python, R… O Instituto Guetto não trabalha com nenhum curso de manutenção de status quo de pobreza. Então, qualquer pessoa que entra no Instituto, através dessa escola, vai acessar uma vaga de trabalho que produz mobilidade social.

Fonte: Redação Terra
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