Cada vez mais brasileiros estão pedindo demissão de seus empregos. O fenômeno passou a ocorrer de forma acelerada no país após a pandemia do coronavírus.
Segundo levantamento da LCA Consultores, com base nos dados mais recentes do Ministério do Trabalho e Emprego, o número de brasileiros que decidiram pedir demissão em abril passado foi o mais alto registrado em mais de 20 anos.
Naquele mês, aproximadamente 734,9 mil pessoas decidiram deixar seus empregos. Este foi o maior número registrado desde o início da série histórica, em janeiro de 2004.
Para se ter uma ideia, em 2019, o ano anterior à eclosão da pandemia, cerca de 3,6 milhões de brasileiros pediram demissão.
Em contrapartida, em 2023, o número dobrou para 7,3 milhões pedidos de demissão - média de 20 mil por dia.
Esta tendência se mantém em 2024. O número de demissões voluntárias nos quatro primeiros meses deste ano já é 15,6% superior ao dos quatro primeiros meses do ano passado.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o bom momento da economia, a busca por maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional no pós-pandemia, uma mudança de comportamento entre profissionais mais jovens e a vontade de ter o próprio negócio estão entre os motivos que fazem cada vez mais brasileiros pedirem demissão.
O bom momento da economia
Paulo Feldmann, professor de economia da Universidade de São Paulo (USP), explica que esse fenômeno está diretamente atrelado aos bons resultados econômicos do país.
"A economia depende da expectativa das pessoas em relação ao futuro. Se as pessoas acham que a situação econômica está ou vai ficar ruim, dificilmente pedem demissão", afirma Feldmann.
"Por outro lado, em momentos em que a economia vai bem, como ocorreu em 2023, as pessoas passam a se sentir mais encorajadas em pedir demissão de empregos que elas não estão satisfeitas."
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2023, o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil cresceu 2,9% frente a 2022.
Em comparação, Feldmann cita o período de 2015 e 2016, em que o país atravessou uma situação delicada economicamente.
Dados do IBGE mostram que o PIB caiu 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016.
"Nesse período, o número de pedidos de demissão recuou, porque a maioria das pessoas, mesmo insatisfeitas com o trabalho, tinham receio de que se saíssem do emprego não iriam encontrar outro", explica Feldmann.
Em contrapartida, em 2017, quando o PIB aumentou 1,3%, a acentuada queda do número de demissões dos dois anos anteriores praticamente foi interrompida, se mantendo quase no mesmo patamar de 2016.
Os impactos da pandemia de covid-19
Tatiana Iwai, professora do Insper e especialista em comportamento organizacional, também aponta como motivação para o aumento de pedidos de demissão a pandemia de covid-19.
"Desde que saímos da pandemia, a gente vem observando vários sinais de insatisfação da força de trabalho", diz Iwai.
"Primeiro, logo depois da pandemia tivemos o 'great resignation' - termo utilizado para descrever a onda de demissões voluntárias do pós-pandemia - que foi uma primeira leva de empregados saindo das empresas."
Este primeiro movimento foi impulsionado por profissionais que, ao trabalharem em casa durante a pandemia, perceberam que algumas percepções sobre o trabalho remoto ou híbrido, como uma menor produtividade, seriam mitos, afirma a professora do Insper.
Com isso, ao serem obrigados a voltar para jornada de trabalho presencial, resolveram pedir demissão para buscar um novo emprego que permitisse ter um regime mais flexível de trabalho.
"Em seguida, tivemos trabalhadores que ficavam no emprego, mas fazendo o mínimo necessário", diz Iwai.
Este segundo movimento foi puxado por trabalhadores descontentes com seus empregos, mas que, por receio de pedirem demissão, continuaram até encontrarem uma vaga melhor.
O salário baixo, o excesso de trabalho e o constante estresse causado pelo ambiente organizacional levaram Vitória Lopes, de 28 anos, pedir desligamento do cargo de analista de projetos.
"Chegou em um ponto que nem se aumentasse o meu salário (o que não aconteceu) eu queria ficar na empresa. Então, resolvi sair", diz Vitória.
"Digo que foi a melhor sensação do mundo, foi como se eu estivesse tirado uma doença do meu corpo."
Motivações parecidas que também fizeram a assistente social Laiz Meireles, de 34 anos, pedir demissão, em 2023.
"Trabalhava em uma escola com um volume de trabalho muito grande e com uma cobrança enorme", afirma Laiz.
"Vi que não valia a pena todo o meu esforço e responsabilidade ali, que nunca seria valorizada, e minha saúde mental seria mais prejudicada se continuasse. Foi quando pedi demissão."
Por fim, há um terceiro movimento, que são de empregados que ficam na empresa, mas demonstram que não têm interesse de ocupar posições de liderança na organização, diz Iwai.
"Ou seja, são movimentos que sinalizam algo de errado no ambiente de trabalho e que devem demandar um olhar mais cuidadoso dos empregadores para saber o que essa força de trabalho quer? E o que a organização não está conseguindo suprir?"
Uma nova geração de empregados
A psicóloga organizacional e do trabalho Juliana Ferrari avalia que isso ocorre porque, com a pandemia, as pessoas passaram a valorizar mais o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, a flexibilidade de horários e empregos alinhados com os seus princípios.
"Quando o trabalho não oferece esses benefícios, muitos deixam a empresa", diz Ferrari.
Ao mesmo tempo, diz Ferrari, uma nova geração de profissionais entrou no mercado com uma visão diferente sobre o emprego do que a de seus pais.
"Essas gerações de trabalhadores mais jovens, especialmente da geração Y (30 a 42 anos) e da geração Z (34 a 14 anos) que, normalmente, são os que mais pedem demissão no Brasil estão em busca de empregos alinhados com seus valores pessoais e valorizam a flexibilidade e possibilidade de trabalhar remotamente."
Ferrari diz que atualmente, o pedido de demissão não é mais visto como falta de comprometimento do funcionário como ocorria antes.
"No passado, por conta de menos oportunidades e menor concorrência entre as empresas, era comum as pessoas trabalharem anos em uma mesma organização", diz a especialista.
"Hoje, isso tende a torna-se cada vez mais raro, pois existe mais oportunidade de emprego."
Gabriela Melo, de 28 anos, já pediu demissão de seis empresas desde que começou a trabalhar há seis anos.
"Comecei aos 22 anos em uma startup de tecnologia, sempre na área de vendas. Tive oportunidade de trabalhar em grandes empresas do mercado, como Kraft Heinz, DocuSign, Take Blip, chegando no meu principal objetivo que era o Google", conta Gabriela.
"Mas o que o sempre me motivou a sair de todas as empresas foi sentimento de querer mais, ter maior flexibilidade e autonomia com o meu trabalho. Não queria mais vender minhas horas, isso me limitava".
Iwai destaca que, hoje, existe filosofia de construção de carreira diferente por parte dos funcionários.
"A maioria dos empregados não busca subir de carreira dentro da empresa, mas acumular conhecimento próprio para alcançar seus objetivos pessoais."
Gabriela diz não se arrepender dos pedidos de demissão. "Meu objetivo sempre foi poder absorver o máximo possível de cada lugar. E foi isso que fiz", diz Gabriela, que atualmente é empresária.
Segundo Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getulio Vargas (FGV), é uma tendência global.
"Definitivamente, será cada vez mais raro encontrar trabalhadores atuando por um longo período em uma mesma empresa", diz Duque.
"Hoje, existe uma maior rotatividade no mercado de trabalho. As empresas se adaptam mais rapidamente (aos novos empregados), e os trabalhadores acabam encontrando mais oferta de trabalho."
O aumento do empreendedorismo
Outro movimento que tem influenciado o número de pedidos de demissão, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, é o do empreendedorismo.
Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) mostram que o número de empresas abertas anualmente mais do que dobrou na última década, passando de 1,89 milhão em 2014 para 3,87 milhões em 2023.
Isso é impulsionado por uma explosão do número de microempreendedores individuais, popularmente conhecidos como MEIs.
A quantidade de pessoas que trabalham como pequenos empresários de forma individual mais do que triplicou no Brasil nestes mesmos dez anos, segundo dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), com base em estatísticas do governo federal.
Passou de 4,6 milhões, em 2014, para 15,7 milhões, em 2023, um aumento de 237,8%.
Especialistas apontam que muitas pessoas que pedem demissão para empreender começam desta forma.
Em busca de uma nova fonte de renda ou de maior liberdade econômica, elas deixam seus empregos para abrir seus próprios negócios.
Tatiana Iwai diz que ao empreender as pessoas acreditam que irão conseguir suprir algumas necessidades que não conseguem como trabalhador formal, como ter mais flexibilidade de horário e liberdade financeira.
O que nem sempre é verdade, ressalta a professora do Insper. "Existe uma certa idealização do que é empreender no Brasil", afirma Iwai.
"Muitas vezes, a gente acaba falando dos casos de sucesso do empreendedorismo e menos nos casos de fracasso. Isso encoraja as pessoas a se engajarem nesse sonho de empreender, que nem sempre acaba dando certo."
Paulo Feldmann, da USP, concorda que o empreendedorismo pode ser mais desafiador do que muitas pessoas imaginam.
"Digo que pedir demissão já um ato de coragem, mas pedir demissão para empreender no Brasil, é ainda mais", diz Feldmann.
Feldmann ressalta que, no Brasil, mais da metade das empresas abertas fecham em até cinco anos.
"Isso ocorre porque o Brasil ainda é muito cruel com as pequenas empresas. Apesar de ter uma menor incidência de tributos, no caso do MEI, a concorrência entre as pequenas empresas e as grandes ainda é muito desleal", afirma o professor da USP.
"Na Itália, por exemplo, é proibido cadeia de farmácia, justamente para proteger as pequenas farmácias. No Brasil, a cadeia de farmácias é comum, fazendo com que pequenas farmácias de família seja cada vez mais raras."
Os direitos de quem pede demissão
Juliana Ferrari orienta que, em todos os casos, ao pedir demissão o funcionário deve antes avaliar ao menos três fatores:
- Os impactos financeiros da demissão, ou seja, como perda de renda até encontrar um novo emprego pode impactar sua vida;
- Refletir sobre as razões da saída, se são momentâneas ou permanentes;
- E procurar já ter um plano ou oportunidade seguinte ao pedir demissão.
No Brasil, a legislação trabalhista prevê alguns direitos ao trabalhador no caso de ele pedir demissão.
- direito ao saldo salarial;
- décimo terceiro salário proporcional;
- férias vencidas (se tiver) e férias proporcionais, ambas acrescidas de 1/3.
Ainda, segundo a legislação, no Brasil, o empregado pode pedir demissão de duas formas:
a) pedido de demissão tradicional: o trabalhador comunica à empresa do seu desligamento. Nesse caso, o empregado deverá conceder o aviso prévio ao empregador, que poderá ser trabalhado, ou seja, o empregado comunica o empregador que em 30 dias rescindirá o contrato de trabalho. O trabalhador também pode optar por não cumprir o período referente ao aviso-prévio, desligando-se imediatamente da empresa. Assim, a ausência de cumprimento do aviso prévio dá ao empregador o direito de deduzir o valor correspondente ao aviso prévio em suas verbas rescisórias.
b) pedido de demissão por mútuo acordo: nesta modalide, o trabalhador receberá saldo salarial; décimo terceiro salário proporcional; férias vencidas (se tiver) e férias proporcionais, ambas acrescidas de 1/3, metade do valor correspondente a aviso prévio; multa de 20% sobre os depósitos do FGTS, direito de saque de 80% dos depósitos do FGTS. Porém, o trabalhador não tem direito ao seguro-desemprego nesta modalidade de rescisão contratual.
Alessandra Souza Menezes, advogada e membro da Comissão da Advocacia Trabalhista da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), ressalta que, em todos os casos, o empregador não pode recusar o pedido de demissão, porque não pode obrigar um empregado a manter o contrato de trabalho contra sua vontade.
"Entretanto, caso o empregador se recuse a receber o pedido de demissão, o trabalhador pode encaminhar-lhe um telegrama com cópia e confirmação comunicando acerca do pedido de demissão ou pode comunicá-lo por e-mail com confirmação de leitura", diz a advogada.